AS COISAS QUE NOS CERCAM
Paulo Henriques Britto
DE "TRÊS EPIFANIAS TRIVIAIS"
II
As coisas que te cercam, até onde
alcança tua vista, tão passivas
em sua opacidade, que te impedem
de enxergar o (inexistente) horizonte,
que justamente por não serem vivas
se prestam para tudo, e nunca pedem
nem mesmo uma migalha de atenção,
essas coisas que você usa e esquece
assim que larga na primeira mesa —
pois bem: elas vão ficar. Você, não.
Tudo que pensa passa. Permanece
a alvenaria do mundo, o que pesa.
O mais é enchimento, e se consome.
As tais Formas eternas, as Idéias,
e a mente que as inventa, acabam em pó,
e delas ficam, quando muito, os nomes.
Muita louça ainda resta de Pompéia,
mas lábios que a tocaram, nem um só.
As testemunhas cegas da existência,
sempre a te olhar sem que você se importe,
vão assistir sem compaixão nem ânsia,
com a mais absoluta indiferença,
quando chegar a hora, a tua morte.
(Não que isso tenha a mínima importância.)
[In Macau, Companhia das Letras, 2003]
Um comentário:
My, fico muito agradecido pela dedicatória do post a mim!
Assim que vi que o poema era do Paulo Henriques Britto, fui correndo para o fim conferir de qual livro foi tirado;"Macau". Quero muito ler "Macau". "Tarde", que comprei recentemente, transformou-se numa leitura diária; fascinante!
O trabalho de PHB me surpreende. Veja só como ele, num poema sapiencial, praticamente filosófico, prima pela forma, não deixando de lado aspectos como rima, métrica e etc; eu o vejo como um "arquiteto", algo como João Cabral; cada trecho é pensado, não há palavra colocada por acaso - tudo parece muito bem calculado. Ele usa um recurso que, antes, eu achava ruim, desagradável : o enjabement. Agora, vendo como pode ser usado com maestria, reconsidero minha opinião.
O trecho :
"Muita louça ainda resta de Pompéia,
mas lábios que a tocaram, nem um só."
me fez notar a figura inicial, a obra da Yoko Ono. Refleti sobre a metade das coisas : um quarto pela metade (seria a outra metade a presença humana do dono do quarto ou de "alguém especial"?), a louça sem os lábios (até que ponto museus nos dão noção do que realmente aconteceu?). Acho que estou tendendo cada vez mais para a idéia de "obra aberta". Umberto Eco diria que a ambiguidade da obra, diferentemente do que costumamos ouvir e ler por aí, é algo positivo, característico do discurso aberto. Essa idéia de abertura está associada - pq não - com a democracia em si; costumam dizer que a arte está sempre à frente dos demais âmbitos sociais, não é mesmo?
A obra da Yoko, nesse sentido, assim como a arte que era produzida naquela época (e quando falo disso me vêm à cabeça personagens como Lygia Clark e Helio Oiticica) está comprometida com essa abertura, com essa relatividade da verdade. E é aí que discordo daquela idéia de análise interpretativa com base na linguística, que considera o texto pelo texto; o discurso de quem defende isso sempre me soa um tanto quanto ventriloquismo - a propria voz saindo como se fosse da obra.
Ótimo saber que Yoko contestou essa arbitrariedade de uma verdade instutuída, única, convidando o receptor a participar da criaçao, e que PHB, em certa medida, também o fez e faz, com seus poemas questionadores e convidativos à reflexao.
Fico por aqui, chega de pedantismo. rs
um beijo, Luca!
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