sábado, 17 de janeiro de 2009

um jovem de 80 anos


Comecei o ano atrasada, já estávamos no dia 11, e uma data acabou passando, sem que eu comentasse: os 80 anos de Tintim. Foi em 10 de janeiro de 1929 que a primeira prancha do cartunista belga Hergé (1907-1983) saiu no Le petit vintième, suplemento infantil do jornal Le vintième siècle. Nessa história, Tintim no país dos sovietes, o jovem repórter, acompanhado de seu cachorrinho Milu, em viagem a então União Soviética, é incumbido de escrever uma reportagem sobre o suposto lado mau do regime comunista. Era um início marcado pela ingenuidade no desenvolvimento do argumento, mas Hergé já revelava as qualidades que fariam dele um dos maiores nomes das HQ (ou BD, bandes dessinnées, em francês, e bandas desenhadas, no português de Portugal). Traduzidas em mais de 50 idiomas, com mais de 200 milhões de álbuns vendidos, as histórias de Tintim habitaram a infância de incontáveis leitores - e, para muitos, continuaram presentes também na vida adulta.

Depois da Rússia, retratada de forma crítica e parcial - como ele mesmo admitiu anos depois - pelo seu conhecimento ainda limitado em outras culturas, Hergé levaria o seu herói à África, aos Estados Unidos, à América do Sul, por toda a Europa e mesmo à Lua, 20 anos antes de Neil Armstrong. As acusações já feitas ao autor, como "racista", "defensor dos maus tratos aos animais", "politicamente incorreto", foram feitas por pessoas que não souberam ler e interpretar sua obra à luz da época e do contexto em que foram escritas. Algumas histórias são verdadeiros retratos instantâneos do pensamento ocidental vigente na época, o que as torna ainda mais interessantes. Se nos primeiros álbuns ainda dominava uma visão eurocêntrica e cheia de clichês sobre lugares exóticos como a África e o Egito, a partir de O lótus azul , Hergé passa a dedicar maior atenção na elaboração das histórias e na pesquisa sobre povos e lugares onde as aventuras de Tintim iriam acontecer. Durante a pesquisa extensiva que realizou para escrever esta história, Hergé foi influenciado pelos estilos ilustrativos de gravura chinesa e japonesa, o que é notável na paisagem marítima, similar aos trabalhos de Katsushika Hokusai e de Hiroshige.

O sucesso da aventuras do pequeno jornalista talvez não se deva somente ao protagonista em si, mas também ao ritmo dado pelo autor nas histórias, ao desenho extremamente detalhista das paisagens naturais, cidades, navios, automóveis e à variada galeria de personagens que cercavam Tintim que, em muitos momentos, acabava sendo colocado em segundo plano por seus companheiros, tornando-se uma espécie de coadjuvante das piadas e peripécias protagonizadas pelos demais. Essa estratégia da deslocar o foco das atenções para outros personagens não é exclusiva das HQ's ou da literatura: está presente no cinema e na tv - em séries americanas como Seinfeld - ou até mesmo nas novelas brasileiras. Além de enriquecer a narrativa, ela faz com que o interesse por esta seja multiplicada, ao criar vários microuniversos e possibilitar outras empatias. Quem não se apaixonou - assim como aconteceu com o impagável Kramer, de Seinfeld - pelo Capitão Haddock, que surge em O caranguejo das tenazes de ouro, com seu gênio irascível e seus impropérios, sua luta contra o álcool e suas pretensões de se tornar um lorde inglês? Ao lado dele, também surgem: o Professor Girassol, cientista que é uma versão surda de Mister Magoo; Bianca Castafiore, esfuziante cantora de ópera que é apaixonada por Haddock; os detetives gêmeos Dupont e Dupond, amigos trapalhões de Tintim, sátira aos policiais ingleses, e tantos outros.


Milu
, o fox-terrier branco, amigo inseparável de Tintim e meu personagem favorito, é um caso à parte: único interlocutor do herói nas primeiras histórias, tem às vezes características mais humanas que o próprio dono. Leal ao extremo, vivo e inteligente, salva-o inúmeras vezes da morte, mas sua curiosidade também o leva a se meter em enrascadas. Além disso, é guloso, paquerador e a exemplo do Capitão, gosta de beber uísque. Seu ponto fraco são as aranhas, pelas quais tem pavor. Milu frequentemente "fala" com o leitor por meio de seus pensamentos, mostrando um humor seco e realista, que contrasta com o idealismo de Tintim.


Com Tintim, Hergé (cujo nome verdadeiro era Georges Remi) construiu uma obra deslumbrante, tendo por principais vetores a aventura, a amizade, a lealdade e o sentido de justiça, contrapondo-os, com humor e leveza, aos "defeitos" tão humanos e adoráveis dos personagens.

Além dos inúmeros estudos sobre a obra de Hergé, eventos em vários países afirmam atualmente a importância e o crescente interesse por sua obra:

- em 2007 , a exposição no Centro Pompidou, em Paris, pelo centenário de nascimento de Hergé



- em abril de 2007, o desenho a guache que serviu de capa à primeira edição de Tintim na américa, datado de 1932, foi arrematado num leilão em Paris por 764 mil euros.



- a inauguração do Museu Hergé, marcada para 22 de maio de 2009, data do 101º aniversário do nascimento do pai de Tintin. Situado em Louvain-la-Neuve, na Bélgica, projeto do famoso arquiteto francês Christian de Portzamparc.


- o filme produzido por Steven Spielberg e Peter Jackson (de O senhor dos aneis), baseado no díptico O segredo da Licorne/O Tesouro de Rackham, o terrível, que tem estreia prevista para 2010, primeiro de uma trilogia, usando a mesma técnica de captura de movimentos que deu vida a Gollum em O Senhor dos Aneis.

- e no Brasil, a Companhia das Letras acaba de completar a republicação de todos os álbuns de Tintim - antes editados pela Record e que estavam esgotados - além de dois inéditos, todos traduzidos por Eduardo Brandão, prestigiado tradutor de Roberto Bolaño, Javier Marías e Orhan Pamuk.

Tintim é um assunto inesgotável. Para os tintinófilos como eu, deixo mais alguns links, bem bacanas:

- o site oficial de Tintim - tudo está lá: vídeos, entrevistas, jogos, notícias.
- l'Univers de Tintin - muitas curiosidades.
- Milu fait "plouf" - página do site anterior, com as diversas traduções para o "pluf" de Milu.
- documentário Tintin et moi - provavelmente o melhor documentário feito até hoje sobre a obra e a vida de Hergé; em 8 partes, no Youtube. [*]
- Les autos de Tintin - site com os desenhos e as fotos correspondentes dos muitos carros que aparecem nas histórias

Ah! Tintim, em francês, pronuncia-se 'Tantan"ou "Tantã", mas é claro que no Brasil ele não poderia ser chamado assim, não é?

[*] atualização em 18/05/2011: os vídeos foram tirados do ar, que pena!

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

aprendendo de ouvido


O Estadão publicou um belo artigo, do Roberto DaMatta, que vai abaixo, na íntegra. Tem a ver com educação, com cultura, trabalho, experiência e com as diferentes maneiras de como encaramos tudo isso em nossas vidas. E tem a ver também com rixas e teimosias.

O presidente não lê


Roberto DaMatta

Numa terra de cegos, quem tem um olho é rei. Num país de gente sedenta e carente de leitura, é desanimador e melancólico descobrir que o presidente da República, o sujeito mais importante e poderoso do sistema; a figura a quem devemos respeito e lealdade pelo cargo que ocupa; que representa não só um partido ou posição política e econômica, mas - como supremo magistrado da nação - a todos nós; o homem número 1 do País, não lê. Mais: em entrevista ao jornalista Mario Sergio Conti, para a revista Piauí, ele declara que, quando tenta fazê-lo, tem azia. Ademais, descobrimos que ele fez como o pior presidente que os americanos jamais tiveram, George W. Bush, pois dele veio a cópia de uma estrutura palaciana montada para evitar a leitura. Para um sujeito como eu, que vive para os livros e de livros, e que morreria sem livros; para quem a leitura tem sido um meio de dar sentido à vida e de lidar com o amor, com a perda, com o sucesso, com a raiva, o trabalho e com a morte, saber dessa antipatia à leitura é - digo-o sinceramente e com o coração na mão - chocante, inacreditável, triste, devastador.

Para quem tem na leitura não só uma fonte de informação e sabedoria, mas os motivos para viver, como é o caso dos professores, escritores, educadores, ensaístas, legisladores, pensadores e jornalistas; funcionários e intérpretes das normas legais, cujo trabalho consiste em aplicar regulamentos, decidindo a todo instante o que é correto; descobrir que o presidente não lê é uma bofetada na cara!

Vejam bem, há contradições triviais. O padre pecador, o ateu crédulo, o professor ignorante, o médico hipocondríaco, o economista pobre, o pastor malandro, o jornalista venal, o desembargador corrupto, o policial criminoso e o político sem caráter. Mas todos leem! Todos se informam por meio de amigos e auxiliares, mas não abandonam o contato direto com a fonte: esse foco indispensável ao conhecimento do mundo. Esse mundo feito de representações codificadas, de palavras e algarismos articulados numa determinada intenção e estrutura. Estivesse eu dizendo o que digo por meio de rimas, o efeito seria diferente. É por causa disso que eu não posso me conformar com um presidente que não lê.

O que saiu na revista deve ser um engano. Estou seguro que o presidente lê. Lula estava simplesmente brincando com o entrevistador. Ressentido ou ofendido com alguns jornais e revistas, o presidente usou o manto da ironia e resolveu chocar o estabelecimento jornalístico, dizendo que não lê. Não posso acreditar que o servidor público mais importante do meu país, apreenda o mundo apenas por meio do ouvido. Sendo instruído e informado sobre os eventos e idéias deste nosso mundo conturbado somente por meio de conversas permeadas pelo ponto de vista e emoções dos seus interlocutores. Não posso crer que o presidente se contente em apenas ouvir o canto do galo, sem jamais vê-lo em pessoa. Que ele não tenha nenhum momento a sós consigo mesmo, no qual - com um texto na frente dos olhos - coloque para dentro de seu ser, por meio da leitura solitária e individualizadora, aquilo que o autor da narrativa explicita, revela, ensina, critica, pede, descobre, interpreta, anuncia, reitera, louva, interroga, suspeita, ou condena.

Quando o presidente diz que não lê, ele envia uma poderosa mensagem à sociedade que o elegeu. No fundo, ele diz que o discernimento pode ser alcançado por vias externas. Os laços sociais substituem a experiência da leitura que usualmente vai dos jornais e revistas para os livros. O que impressiona não é apenas o fato do homem não ler. É o fato dele estar seguro de que é mesmo possível saber das coisas por tabela e em segunda mão, por meio de olhos alheios. Sem a visão direta, interiorizada, individualizada e subjetiva dos fatos e problemas, porque eles podem ser assimilados por meio dos outros. E que ele não leva a sério a imprensa livre e contraditória que, como ele mesmo admite, foi decisiva na sua eleição.

A leitura vai muito além da informação. Ela mostra que os fatos são sempre inventados, relativos e determinados por perspectivas. Um mesmo "fato" pode produzir pontos de vista diversos, relativos a um mesmo dilema ou questão. Num mundo permeado por contradições, a leitura é um instrumento privilegiado para entendê-las e eventualmente superá-las.

Em estado de choque, penso na lição daquele Machado de Assis que - diga-se logo - não pode deixar de ser lido, quando ensinou que quem conta um conto aumenta (e necessariamente subtrai) um ponto. As versões pessoais, a apreensão marcante, sempre surgem da leitura em primeira mão. Como um sujeito que morreria sem os livros, como uma pessoa cuja profissão é ensinar a ler e que vive de leitores, eu sou obrigado a imaginar que essa entrevista é, no mínimo, um conto; e, no máximo, uma catastrófica notícia.


[Caderno 2, O Estado de São Paulo, 14/01/2009]

domingo, 11 de janeiro de 2009

um ano novo (quase) perfeito


O primeiro dia do ano começou nublado. A previsão dizia: "sujeito a pancadas de chuva ocasionais". Eu estava na praia, num condomínio limpo e organizadíssimo: a areia com certeza era higienizada todas as noites, enquanto dormíamos. Ao amanhecer, beirando a praia, extensos e bem cuidados jardins cheiravam a grama recém-cortada, molhada pelo sereno. Até o céu parecia mais bonito, com as nuvens formando um cetro adequado ao nobre lugar. Confesso que me sentia um tanto constrangida em estar , sem pertencer àquele mundo, onde tudo é quase perfeito. Ou culpada, sei lá. Mulheres insatisfeitas, mas em parte felizes por exibirem os resultados das recentes plásticas, homens vaidosos conversando sobre as aquisições do ano que passou: os imóveis, os carros, as ações que subiram. Nas mesas fincadas na areia - embaixo dos guarda-sóis identificados pelos nomes sofisticados dos prédios - caipiroskas, energéticos, pastéis de camarão servidos quentinhos e revistas de celebridades competiam por espaço. Estranho não ver sequer um jornal em dois quilômetros de praia: alienação peculiar das férias? As crianças, graças a Deus, ainda se mantinham encantadoramente imperfeitas: pisando sem dó nos castelos de areia, chorando pelo quinto sorvete, brigando na hora de ir embora, perdendo-se dos pais. Na noite anterior, naquela mesma praia, o espetáculo dos fogos se prolongara por quase meia hora: "parece abertura de olimpíada", disse o rapaz que bebia champanhe numa taça de plástico. Mas também ouvi queixas. O comentário geral foi que "no ano passado estava bem mais bonito". É a crise.

A foto acima não é de , claro. Encontrei por acaso na web, sem autoria, datada do primeiro dia do ano. Parece ser de algum bairro de classe média ou da periferia de uma grande cidade, como São Paulo. Com todas as imperfeições possíveis. E iluminando o céu carregado, um arco-íris. Mesmo sendo um arremedo de arco-íris, não pude deixar de pensar na alegoria criada por esse milagre de cores, num início de ano de previsões pessimistas, que todos fizemos questão de esquecer pelo menos por um dia. Perfeito. Ou quase.

Ah, sim, ia me esquecendo: um ótimo ano a todos. Estou de volta.