sexta-feira, 30 de novembro de 2007

título 1. por que não leio drummond com frequência ou 2. combinaison dangereuse

Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

[de Carlos Drummond de Andrade, do livro Corpo, Edit. Record, 1984]


Ler certos poemas de Drummond me faz muito mal.
Talvez eu seja muito permeável. Os fluidos me transpassam, se instalam e demoram a se diluir.

O problema é que também estou lendo muito Le Marquis de Sade.


domingo, 25 de novembro de 2007

ivan ilitch e o personagem sem nome de philip roth


"Ivan Ilitch via que estava morrendo, e o desespero não o largava mais. Sabia, no fundo da alma, que estava morrendo, mas não só não se acostumara a isto, como simplesmente não o compreendia, não podia de modo algum compreendê-lo.
O exemplo do silogismo que ele aprendera na Lógica de Kiesewetter: Caio é um homem, os homens são mortais, logo Caio é mortal, parecera-lhe, durante toda a sua vida, correto somente em relação a Caio, mas de modo algum em relação a ele. Tratava-se de Caio-homem, um homem em geral, e neste caso era absolutamente justo; mas ele não era Caio, não era um homem em geral, sempre fora um ser completa e absolutamente distinto dos demais; ele era Vânia, com mamãe, com papai, com Mítia e Volódia, com os brinquedos, o cocheiro, a babá, depois com Kátienka, com todas as alegrias, tristezas e entusismos da infância, da juventude, da mocidade. Existiu porventura para Caio aquele cheiro da pequena bola de couro listada, de que Vânia gostara tanto?! Porventura Caio beijava daquela maneira a mão da mãe, acaso farfalhou para ele, daquela maneira, a seda das dobras do vestido da mãe? Fizera um dia tanto estardalhaço na Faculdade de Direito, por causa de uns pirojki? Estivera Caio assim apaixonado? E era capaz de conduzir assim uma sessão de tribunal?
E Caio é realmente mortal, e está certo que ele morra, mas quanto a mim, Vânia, Ivan Ilitch, como todos os meus sentimentos e idéias, aí o caso é bem outro. E não pode ser que eu tenha de morrer. Seria demasiadamente terrível.
Era assim que ele sentia."


[A morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói, tradução de Boris Schnaiderman, Ed. 34, 2006]

Leon Tolstói é considerado, ao lado de Dostoiévski e Tchekhov, um dos grandes escritores russos. Suas obras mais famosas são Guerra e Paz - visão épica da sociedade russa, entre 1800 e 1815, com uma filosofia extremamente otimista, apesar de atravessar os horrores da guerra - e Ana Karenina; os dois romances são sempre apontados entre as principais obras da literatura universal. Há que considere, no entanto, A morte de Ivan Ilitch sua verdadeira obra-prima.


"Os únicos momentos desconfortáveis eram à noite, quando caminhavam juntos ao longo da praia. O mar escuro a rugir imponente e o céu a esbanjar estrelas faziam Phoebe entrar em êxtase, porém o assustavam. A abundância de estrelas lhe dizia de modo inequívoco que ele estava fadado a morrer, e o trovão do mar a poucos metros de distância - e o pesadelo daquele negrume mais negro sob o frenesi das águas - lhe davam vontade de fugir correndo daquela ameaça de aniquilamento para a casinha de raia acolhedora, iluminada e quase sem móveis. Não era assim que ele encarava a imensidão do mar e do céu noturno no tempo em que servira bravamente a marinha, logo depois da guerra da Coréia - naquela época, mar e céu não eram para ele sinos fúnebres. Não conseguia entender de onde vinha aquele medo, e precisava de todas as suas forças para ocultá-lo de Phoebe. Por que estaria inseguro sobre sua vida, justamente agora que a dominava mais que em qualquer outro momento dos últimos anos? Por que se imaginava próximo da extinção quando um raciocínio tranqüilo e objetivo lhe dizia que ainda tinha muita vida sólida pela frente?"

[Homem comum, de Philip Roth, tradução de Paulo Henriques Britto, Companhia das Letras, 2007]


Qual a razão dos dois trechos reunidos aqui? Tolstói e Roth tratam de maneira absolutamente fascinante um tema que, a princípio, todos evitamos: a perspectiva da nossa própria morte. Os protagonistas de seus livros são muito diferentes entre si, distantes no tempo e no espaço, mas têm em comum o fato de não aceitarem a precariedade da vida, o fato de caminharmos inapelavelmente para o fim. O que devia nos tornar extremamente solidários, embora nem sempre isto aconteça.

Roth constrói com mordacidade mas também com um certo lirismo um personagem sem nome pelo qual a princípio não sentimos empatia - um publicitário que vive a trair suas mulheres e a enfrentar uma sucessão de problemas de saúde. A justificativa para a nossa rejeição talvez seja por não aceitarmos o fato de que também somos comuns - como ele - e que podemos perecer, a qualquer momento.

Além de caminharem em território semelhante, a narrativa extremamente envolvente e a sua percepção aguda do comportamento humano trazem à lembrança Tolstói e seu inesquecível Ivan Ilitch.


Philip Roth nasceu em Newark, Nova Jersey, em 1933. Escreveu mais de 20 romances e é considerado um dos maiores escritores americanos da atualidade. Venceu por três vezes o prêmio literário PEN/Faulkner. É autor de, entre outros, Complexo de Portnoy, A marca humana, O animal agonizante e Complô contra a América. Sua obra, de momentos extremamente confessionais, suscita freqüentemente discussões sobre o que é ficção e o que é real em suas histórias.

Em 2005, numa de suas raras entrevistas, Roth disse que o público para literatura não existia mais, apesar de termos ótimos escritores e de os livros continuarem a ser escritos. "Acho que uma sociedade sem literatura será ruim, a literatura é uma das coisas boas da civilização. Mas as pessoas vão ficar bem sem livros, aliás elas não querem mais livros", declarou. É só sair do mundo restrito das Letras e das Artes em geral ou olhar para a nova geração para ver que ele tem razão. Ou não?


segunda-feira, 19 de novembro de 2007

pressa

Aforismo interessante que li hoje:

"Os deuses costumam dar glórias àqueles a quem pretendem fazer sofrer."


Mesmo assim, não me incomodaria receber a minha cota.
Pronta entrega, se possível.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

a precariedade e a permanência

, Yoko Ono(para Luca)


[Half a Room, de 1967, obra de Yoko Ono]


AS COISAS QUE NOS CERCAM

Paulo Henriques Britto


DE "TRÊS EPIFANIAS TRIVIAIS"

II

As coisas que te cercam, até onde
alcança tua vista, tão passivas
em sua opacidade, que te impedem
de enxergar o (inexistente) horizonte,
que justamente por não serem vivas
se prestam para tudo, e nunca pedem

nem mesmo uma migalha de atenção,
essas coisas que você usa e esquece
assim que larga na primeira mesa —
pois bem: elas vão ficar. Você, não.
Tudo que pensa passa. Permanece
a alvenaria do mundo, o que pesa.

O mais é enchimento, e se consome.
As tais Formas eternas, as Idéias,
e a mente que as inventa, acabam em pó,
e delas ficam, quando muito, os nomes.
Muita louça ainda resta de Pompéia,
mas lábios que a tocaram, nem um só.

As testemunhas cegas da existência,
sempre a te olhar sem que você se importe,
vão assistir sem compaixão nem ânsia,
com a mais absoluta indiferença,
quando chegar a hora, a tua morte.
(Não que isso tenha a mínima importância.)


[In Macau, Companhia das Letras, 2003]

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

horas mudas



Sem muito o que escrever, leio. Sem muito o que falar, ouço.

"Toco a sua boca, com um dedo toco o contorno da sua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a sua boca se entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e desenha no seu rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade eleita por mim para desenhá-la por minha mão em teu rosto, e que por um acaso que não procuro compreender coincide exatamente com a sua boca, que sorri debaixo daquela que a minha mão desenha em você.

Você me olha, de perto me olha, cada vez mais de perto, e então brincamos de ciclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam uns dos outros, sobrepõem-se, e os ciclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se no seu cabelo, acariciar lentamente a profundidade do seu cabelo, enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto você tremular contra mim, como uma lua na água."

[Cortázar, Julio - O jogo da amarelinha, tradução de Fernando de Castro Ferro, capítulo 7 - talvez o trecho mais conhecido do livro.]


Cortázar, lendo este trecho: ouça aqui.

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

fetiches de david lynch


Vida corrida é isso: mais uma que vou perder. Termina amanhã, na Galerie du Passage - que fica na Galerie Véro Dodat, entre as ruas du Bouloy e Croix des Petis Champs, Metro Louvre, à Paris - a exposição de fotografias de David Lynch, Fetish.





Lynch fotografou souliers de Christian Louboutin, top designer de sapatos, alguns criados especialmente para a exposição, em ambientes povoados de sombras, e onde os corpos nus das dançarinas do Crazy Horse, Nouka e Baby, se destacam. As peles perfeitas, muito brancas, os olhos escuros, as bocas vermelhas e brilhantes são ícones da estética de Lynch, assim como os sofás, o ambiente pesado e decadente, presentes também em seus filmes, como no mais conhecido deles, Veludo Azul (Blue Velvet, 1986). Como em todos os seus filmes, na obra plástica de Lynch há sempre um estranhamento, uma sensação de perigo iminente que nos atrai, como num sonho - ou num pesadelo. Ao contrário deles, que nos chocam diretamente e provocam em certas cenas até uma certa dor, as fotografias são tocantes, luminosas. Os sapatos, porém, tocam em algo obscuro dentro de nós, insinuam um convite ao proibido.



Louboutin e Lynch já tiveram uma parceria na fantástica exposição
The air is on fire, na Fundação Cartier, também em Paris, em maio último. Em meio a telas, desenhos, fotografias e filmes experimentais desse cineasta de múltiplas facetas artísticas, destacava-se um sapato de salto altíssimo, encomendado a Louboutin e elevado à categoria de escultura, dentro de uma gaiola. Tudo a ver com o universo da obra cinematográfica de Lynch, feita de códigos e fetiches.




O cineasta americano David Lynch - aqui em uma foto tirada por ele mesmo - dirigiu, entre outros filmes, Veludo Azul, A Estrada Perdida, Twin Peaks, Cidade dos Sonhos e Império dos Sonhos, este último exibido recentemente na 31ª Mostra Internacional de Cinema, em São Paulo. Premiado em Cannes, inúmeras vezes indicado ao Oscar e outras premiações importantes do cinema, o diretor recebeu no ano passado um Leão de Ouro no Festival de Veneza pelo conjunto de sua obra cinematográfica.

Não fui assistir Império dos Sonhos, não tive tempo nem paciência para o ritual da compra de ingressos e filas intermináveis. Essa falta pode ainda ser redimida, o filme deve passar em circuito comercial. Já a exposição em Paris... é outra história.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

pra sair do mau-humor




resmungos paulistanos

São Paulo está se tornando uma cidade difícil de viver. Se não bastasse a falta total de segurança, o trânsito caótico, agora vem esse calor insuportável, com a temperatura batendo recordes. Lembro de uma época em que o paulistano ficava espantado com o calor do Rio de Janeiro: "37° à sombra!" E os tiroteios, em plena luz do dia, dos quais só ouvíamos falar e achávamos "um absurdo!" Bons tempos aqueles em que nos sentíamos felizes por morar em São Paulo.

Talvez eu esteja resmungando alto. Não é do meu feitio mas, tal como esta cidade, acho que não estou na melhor das fases.

Quando as moscas da desesperança começam a voar ao meu redor, lembro de um amigo que, em ocasiões semelhantes, dizia recorrer aos versos do genial Walter Franco:

tudo é uma questão de manter
a mente quieta
a espinha ereta
e o coração tranqüilo

Aprendi com ele a repetir esses versos, até à exaustão, como um mantra, que tem o poder de entrar em nossa mente e em seguida n'alma aflita, até nos sentirmos zen.

**

Reli agora um poema, do Paulo Henriques Britto, também genial - e fundamental. Uma reflexão sobre o próprio ato de escrever.

No fim de tudo, restam as palavras.
Na solidão do corpo, no saber-se
apenas pasto para o esquecimento.

há sempre a semente de alguma ilíada
mínima, promessa de permanência
no mármore etéreo de uma sílaba,

mesmo sendo mero sopro, captado
na frágil arquitetura do papel,
alvenaria de ar. Restará

a palavra que deixarmos no fim da
nossa história. Que julguem os outros,
que chegarão depois. Mais tarde ainda.


[do livro "Tarde", Companhia das Letras, 2007]