domingo, 25 de novembro de 2007

ivan ilitch e o personagem sem nome de philip roth


"Ivan Ilitch via que estava morrendo, e o desespero não o largava mais. Sabia, no fundo da alma, que estava morrendo, mas não só não se acostumara a isto, como simplesmente não o compreendia, não podia de modo algum compreendê-lo.
O exemplo do silogismo que ele aprendera na Lógica de Kiesewetter: Caio é um homem, os homens são mortais, logo Caio é mortal, parecera-lhe, durante toda a sua vida, correto somente em relação a Caio, mas de modo algum em relação a ele. Tratava-se de Caio-homem, um homem em geral, e neste caso era absolutamente justo; mas ele não era Caio, não era um homem em geral, sempre fora um ser completa e absolutamente distinto dos demais; ele era Vânia, com mamãe, com papai, com Mítia e Volódia, com os brinquedos, o cocheiro, a babá, depois com Kátienka, com todas as alegrias, tristezas e entusismos da infância, da juventude, da mocidade. Existiu porventura para Caio aquele cheiro da pequena bola de couro listada, de que Vânia gostara tanto?! Porventura Caio beijava daquela maneira a mão da mãe, acaso farfalhou para ele, daquela maneira, a seda das dobras do vestido da mãe? Fizera um dia tanto estardalhaço na Faculdade de Direito, por causa de uns pirojki? Estivera Caio assim apaixonado? E era capaz de conduzir assim uma sessão de tribunal?
E Caio é realmente mortal, e está certo que ele morra, mas quanto a mim, Vânia, Ivan Ilitch, como todos os meus sentimentos e idéias, aí o caso é bem outro. E não pode ser que eu tenha de morrer. Seria demasiadamente terrível.
Era assim que ele sentia."


[A morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói, tradução de Boris Schnaiderman, Ed. 34, 2006]

Leon Tolstói é considerado, ao lado de Dostoiévski e Tchekhov, um dos grandes escritores russos. Suas obras mais famosas são Guerra e Paz - visão épica da sociedade russa, entre 1800 e 1815, com uma filosofia extremamente otimista, apesar de atravessar os horrores da guerra - e Ana Karenina; os dois romances são sempre apontados entre as principais obras da literatura universal. Há que considere, no entanto, A morte de Ivan Ilitch sua verdadeira obra-prima.


"Os únicos momentos desconfortáveis eram à noite, quando caminhavam juntos ao longo da praia. O mar escuro a rugir imponente e o céu a esbanjar estrelas faziam Phoebe entrar em êxtase, porém o assustavam. A abundância de estrelas lhe dizia de modo inequívoco que ele estava fadado a morrer, e o trovão do mar a poucos metros de distância - e o pesadelo daquele negrume mais negro sob o frenesi das águas - lhe davam vontade de fugir correndo daquela ameaça de aniquilamento para a casinha de raia acolhedora, iluminada e quase sem móveis. Não era assim que ele encarava a imensidão do mar e do céu noturno no tempo em que servira bravamente a marinha, logo depois da guerra da Coréia - naquela época, mar e céu não eram para ele sinos fúnebres. Não conseguia entender de onde vinha aquele medo, e precisava de todas as suas forças para ocultá-lo de Phoebe. Por que estaria inseguro sobre sua vida, justamente agora que a dominava mais que em qualquer outro momento dos últimos anos? Por que se imaginava próximo da extinção quando um raciocínio tranqüilo e objetivo lhe dizia que ainda tinha muita vida sólida pela frente?"

[Homem comum, de Philip Roth, tradução de Paulo Henriques Britto, Companhia das Letras, 2007]


Qual a razão dos dois trechos reunidos aqui? Tolstói e Roth tratam de maneira absolutamente fascinante um tema que, a princípio, todos evitamos: a perspectiva da nossa própria morte. Os protagonistas de seus livros são muito diferentes entre si, distantes no tempo e no espaço, mas têm em comum o fato de não aceitarem a precariedade da vida, o fato de caminharmos inapelavelmente para o fim. O que devia nos tornar extremamente solidários, embora nem sempre isto aconteça.

Roth constrói com mordacidade mas também com um certo lirismo um personagem sem nome pelo qual a princípio não sentimos empatia - um publicitário que vive a trair suas mulheres e a enfrentar uma sucessão de problemas de saúde. A justificativa para a nossa rejeição talvez seja por não aceitarmos o fato de que também somos comuns - como ele - e que podemos perecer, a qualquer momento.

Além de caminharem em território semelhante, a narrativa extremamente envolvente e a sua percepção aguda do comportamento humano trazem à lembrança Tolstói e seu inesquecível Ivan Ilitch.


Philip Roth nasceu em Newark, Nova Jersey, em 1933. Escreveu mais de 20 romances e é considerado um dos maiores escritores americanos da atualidade. Venceu por três vezes o prêmio literário PEN/Faulkner. É autor de, entre outros, Complexo de Portnoy, A marca humana, O animal agonizante e Complô contra a América. Sua obra, de momentos extremamente confessionais, suscita freqüentemente discussões sobre o que é ficção e o que é real em suas histórias.

Em 2005, numa de suas raras entrevistas, Roth disse que o público para literatura não existia mais, apesar de termos ótimos escritores e de os livros continuarem a ser escritos. "Acho que uma sociedade sem literatura será ruim, a literatura é uma das coisas boas da civilização. Mas as pessoas vão ficar bem sem livros, aliás elas não querem mais livros", declarou. É só sair do mundo restrito das Letras e das Artes em geral ou olhar para a nova geração para ver que ele tem razão. Ou não?