quinta-feira, 23 de outubro de 2008

a opacidade das coisas



Sem tempo algum pra escrever, mas lendo muito. Muitas leituras teóricas pro curso, o último do Philip Roth, o trabalho de pesquisa. Nas madrugadas ou no café da livraria, uma pausa só pra poesia. O meu preferido, já há algum tempo, é Paulo Henriques Britto.


FISIOLOGIA DA COMPOSIÇÃO

I.

A opacidade das coisas
e os olhos serem só dois

A compulsão sem culpa
de dar sentido a tudo

O incômodo pejo
de ser só desejo

Por fim, o acaso
Sem o qual, nada.


[In Macau, Companhia das Letras, 2003]

sábado, 30 de agosto de 2008


Saudade I


Como entender esta saudade,

ponta de faca, dor

que me faz companhia.

Pois se me distraio e foges,

busco-te sem sossego

até encontrar-te,

dor amiga e arredia,

num canto qualquer

do intocável sonho.


[dezembro, 2005]

domingo, 10 de agosto de 2008

a poesia de vinícius



No meio da agitada semana, pausa para um programa diferente: relançamento da obra de Vinícius de Moraes, no Sesc Pompéia. O auditório não lotou, talvez por não ter a presença de celebridades como Chico ou Caetano, como no evento do relançamento da obra de Jorge Amado, também da Companhia das Letras, em março último. Dessa vez, os convidados eram todos intelectuais - os poetas Antonio Cícero e Eucanaã Ferraz; o professor, escritor e músico José Miguel Wisnik e Antonio Carlos Secchin, poeta e crítico literário. E intelectual - pra usar uma expressão já antiga - "não dá Ibope".


Fomos poucos e sentimo-nos privilegiados. O encontro de pessoas tão interessantes e de tanto talento resultou numa aula fantástica sobre a obra e a pessoa de Vinícius. E como bônus, as
emocionantes leituras dos poemas.

Quando saímos, vimos que a noite era fria. Mas a poesia havia nos aquecido e dado um sentido maior àqueles momentos.


[No blogue de Antonio Cícero, o artigo sobre Vinícius, publicado na Folha de São Paulo, em 09/08, que você pode ler clicando aqui.]

sábado, 2 de agosto de 2008

sexta à noite na paulista


O termômetro marcava dezessete graus: ô delícia. Caminhar pela Av. Paulista à noite é um espetáculo que vale a pena registrar. Os cinco minutos que eu gastaria do edifício do Sesc à estação Brigadeiro estenderam-se por quase uma hora, com direito ao café expresso da banca de jornal, papo bem-humorado com o vendedor e um convite dos meninos pra andar de skate na calçada lisinha, recém-inaugurada. A tentação foi grande, mas lembrei da minha infância de joelhos sempre ralados dos tombos de bicicleta, patinete e carrinho de rolimã, e não aceitei. Deveria?









quarta-feira, 9 de julho de 2008

novo livro de alan pauls


Depois de O passado, livro premiado, elogiadíssimo pela crítica, Alan Pauls está com um novo livro. Chama-se Historia del Llanto (Editora Anagrama) e a tradução para o português deve sair no Brasil em breve, pela Cosac Naify.

Na Bravo! de julho, saiu uma entrevista muito bacana do autor argentino - falando do seu livro, do Brasil e de Burroughs, Borges, Joyce, Puig - que você pode ler clicando aqui.

A revista está de site novo, muito bonito, aliás. Os artigos agora estão on-line, em sua versão integral. Quer dizer, não precisamos mais ficar contrariados por ler só uma parte dos textos, não sendo assinante. Gostei demais, bravo!

segunda-feira, 7 de julho de 2008

infernos e paraísos


[Angelus Novus (1920), tela de Paul Klee]

"Há um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso. "

[Sobre o conceito da história, de Walter Benjamin. In: Magia e técnica, arte e política. Brasiliense, 1985]

**



"Estou aqui para esconjurar um demônio. Ele, para trepar comigo. Imagino eu. Pelo menos foi o que fizemos. Uma semana só, tinha dito ele, não mais que isso. Teria de voltar depois ao seu mob. Mob, clã, como se diz aqui. Ele só não disse onde. Algum lugar no outback, nos confins intermináveis deste país. Não faço idéia do que ele tem em mente. É possível até que também esteja me ludibriando. Mas como pode mentir, se ele não diz praticamente nada?

Está dormindo, e, quando dorme, passa a ser o próprio tempo. As pessoas aqui são as mais antigas do mundo. Têm vivido neste país há mais de quarenta mil anos; mais próximo da eternidade que isso, impossível. Uma noite eu saí de carro para dar uma volta, e veja onde vim parar. Eu sei que a coisa não é bem assim, mas na minha cabeça é, sim. Nada do que eu penso é aceitável, mas quem pode me impedir de pensar o que eu quiser? Fito ao meu lado um homem adormecido, que parece ter vivido mais de um século, por mais novo que seja. Está deitado no chão, enrolado como um bicho. Ao abrir os olhos, torna-se velho como uma pedra, como os lagartos que se vêem aqui no deserto, porém se trata de uma velhice não acentuada, leve, já que todos os seus movimentos são leves, como se ele não sentisse o peso do corpo. Esforço-me em dizer a mim mesma que essa impressão é tão falsa como a primeira, mas não é bem assim. Acabei me metendo numa situação da qual perdi o controle, uma vez que aqui a minha noção de tempo não vale. Às vezes, quando me encontro com ele no deserto, neste país constituído quase só de desertos, ou quando me mostra coisas que eu não enxergo e ele próprio se torna a personificação deste país, ciente de onde se encontra o oásis que se mantém oculto para mim, quando me sinto pequena perante sua incomensurável velhice, que vê comida aonde eu apenas vejo areia, é então que acabo involuntariamente pensando que saí de casa naquela noite para chegar aonde estou agora. Abandonei o peso dos trópicos, onde tudo é móvel e ruidoso, a fim de vir parar no silêncio em que agora me encontro."

[trecho de Paraíso Perdido, de Cees Nooteboom, trad. de Cristiano Zwiesele do Amaral, Companhia das Letras, 2008, 158 pág.]

**


Nooteboom esteve na FLIP. Ele e o escritor colombiano Fernando Vallejo, foram responsáveis por um dos 'embates' mais interessantes do evento. Às provocações do cáustico colega latino-americano, entre irônico e bonachão, Nooteboom revidou: “Fernando é o ser mais gentil que conheço, mas é também o mais furioso. Nós dois somos dois pólos opostos.” E revelou uma conversa que os dois haviam tido no café-da-manhã, no hotel de Parati onde estavam hospedados. Vallejo, vegetariano, censurou-o por comer carne, dizendo que, com hábitos desse tipo, selvagens e impiedosos em relação aos animais, ele acabaria indo para o inferno. Ao que Nooteboom respondeu: “Pode ser, mas pelo menos lá encontrarei um monte de gente interessante”.

Palmas para Nooteboom.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

parabéns, Chico











Chico compositor, Chico escritor, Chico jogador de futebol, Chico pai, Chico avô, Chico brasileiro, Chico homem, Chico menino.

Todos eles fazem aniversário hoje.

sábado, 17 de maio de 2008

sete desejos em maio



1. Moby Dick, de Herman Melville, Edit. Cosac Naify,
tradução de Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza,
com fortuna crítica, capa dura, 656 páginas, 15 ilustrações.



2. O sonho dos heróis, de Adolfo Bioy Casares, escritor argentino
admirado por Borges e Cortázar, tradução de José Geraldo Couto,
Editora Cosac Naify, capa dura, 240 páginas.


3. Kachtanka, de Anton Tchekhov , com ilustrações de Genádi Spirin,
Editora Cosac Naify, tradução e adaptação de Rubens Figueiredo,
capa dura, 24 páginas.


4. Austerlitz, de W. G. Sebald, escritor que desafia os limites da ficção,
misturando relatos de viagem, memória, filosofia e fotografia.
Companhia das Letras, tradução de José Marcos de Macedo, 288 páginas.


5. Brad Mehldau Trio Live, cd duplo, gravado no Village Vanguard, NYC,
em outubro de 2006. Ouça 3 faixas no site oficial.


6. Lovers in an upstairs room (1788), de Utamaro Kitagawa (1754-1806),
369 x 255 cm, atualmente no British Museum, Londres.


7. Duas passagens para Cannes, ida e volta, primeira classe,
acesso vip a todas as salas de cinema do festival.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

chez toi


L'avion a tardé a décoller, il y avait des tempêtes de neige dans beaucoup d’aéroports européens et j'ai perdu la connexion à Paris; pour empirer, ils m'ont envoyé à Buenos Aires. Mais j'ai aimé arriver chez moi à minuit, après cette odyssée.

J'ai tourné la clé, tout était silencieux. Les rideaux étaient ouverts, une lumière dramatique rentrait par la fenêtre et dessinait des ombres étirées sur le plancher. J'ai avancé dans cette pénombre avec une sensation de paix que je n'essayais pas depuis longtemps. J'ai allumé la lampe de la salle, le répondeur automatique clignait, je n'ai pas voulu écouter les messages pour ne pas casser le sortilège de ce moment.

Tu dormais, j'ai entendu ta respiration profonde, mais dès que je suis rentrée dans la chambre, tu t'es réveillé. Je n’ai rien dit, tu es resté aussi en silence. C'était comme les tempêtes de neige: le vent soufflait dans nos oreilles sourdes et nous sommes restés congelés par quelques secondes qui nous ont semblé des heures.



[a partir de um parágrafo de Budapeste, de Chico Buarque]

quarta-feira, 16 de abril de 2008

histórias de sebos


Quem gosta de sebos sempre tem uma história pra contar. Raridades que encontrou, pechinchas que conseguiu ou perdeu, tipos estranhos que viu, uma amizade que fez, um amor que conheceu. Por falta de tempo, frequento pouco os sebos, bem menos do que desejaria. Talvez seja por isso que esta história, acontecida há alguns anos, tenha acontecido num ambiente virtual.

Nasci e sempre morei em São Paulo, mas em muitos endereços diferentes. Enfrentei várias mudanças, fiquei craque em embalar, encaixotar, etiquetar. Apesar dos meus cuidados, numa dessas mudanças, a transportadora perdeu uma caixa com livros: surreal, mas aconteceu. Nela estavam uns quinze livros de ficção científica: Asimov, Bradbury, Clarke, uma galáxia inteira de mundos maravilhosos visitados. E outros mais antigos, que eu com certeza não leria novamente, mas pelos quais guardava um carinho especial: Agatha Cristie, Jorge Amado, muitas HQ’s, uma parte boa da minha adolescência. Fiquei inconformada, em seguida desolada, mas o desespero veio quando, terminada a operação desencaixotamento, não achei o meu O Lobo da Estepe. Era o meu livro mais amigo e ao qual recorria, em alguns momentos difíceis: certas passagens me traziam conforto, uma calma interior, até. Substituí-lo revelou-se totalmente inviável, as edições mais novas eram muito diferentes da minha, perdida: outras capas, folhas de papel muito novo, letras que eu não reconhecia. Enfim, não se pareciam com o meu livro: eram como estranhos a dizer velhas frases conhecidas – um terrível deslocamento.

Enviei, então, um e-mail a um sebo virtual que trabalhava com edições raras: o responsável pelos pedidos me respondeu, muito atencioso. Ao explicar que teria de ser a edição da Civilização Brasileira, "aquela que tem na capa o desenho de um homem de costas, com orelhas de lobo", ele respondeu: "É a 3ª edição, de 69. Realmente, a capa é muito original." Na verdade, eu nem sabia a edição; pareceu-me errada a data, muito antiga (69?), mas, impressionada com a convicção do livreiro, acreditei. Trocamos vários e-mails, por mais de um mês. Ele parecia entender a minha angústia por ter perdido o livro. Solidário, disse que O lobo também era um dos seus preferidos; pediu que eu tivesse paciência, que iria achá-lo logo. Eu queria acreditar, e acreditava. Suas mensagens tinham um tom familiar, quase carinhoso. Na minha fantasia, sentia-o quase como um amigo; imaginava-o com roupas antiquadas e dono de uma história singular: alguém que recusou um emprego promissor numa multinacional para terminar um doutorado sobre lírica latina e que ganhava a vida caçando livros antigos para doentes em literatura. Lembrei daquele filme, Nunca te vi, sempre te amei, sobre um livreiro (Anthony Hopkins) que, por anos a fio, troca cartas com uma escritora (Anne Bancroft). Terrivelmente triste, o filme. Lembro ter derramado algumas lágrimas no final. Já havia perdido a esperança de que o livro seria encontrado, quando recebo um e-mail: “Encontramos o livro solicitado, O lobo da estepe, de Hermann Hesse. Por favor, confirme seu interesse e se ainda deseja que o enviemos. Atenciosamente...”. Frio, burocrático. Se ainda desejo o livro? Eu aguardava ansiosamente, sofrendo todo aquele tempo, ele não sabia? Sabia. Aquela mensagem era um rompimento, irremediável. Confirmei o pedido, fiz o depósito, recebi o livro em dois dias, encapado com papel manteiga, envolto em plástico bolha, dentro de uma caixa de papelão. Eficientíssimo.

Não falei mais com o insensível livreiro. O Lobo? Está sempre ao lado de minha mesa de trabalho, como um cachorro fiel. Nunca me decepcionou.


[foto: sebo Baratos da Ribeiro, Copacabana, RJ]

segunda-feira, 7 de abril de 2008

je ne sais pas pourquoi

[Quelqu'un veille pendant ton sommeil, foto de Stéphane Barbery,
templo de Kurotani em Kioto
]



Viver um dia de cada vez.

Nada parece mais verdadeiro, n'est pas?





Premier rendez-vous
Premier baiser dans le cou
Nous nous sommes dis vous
Nous nous sommes dis presque rien,
Et presque tous en somme
Je ne sais pas pourquoi
Je ne sais pas où
Cette vie ne nous mène
Qui vivra verra
Qui me le diras
Cette vie ne vous mène à quoi
Second rendez-vous
Brûlant comme l'eau qui boue
Le tout pour le tout
A bout portant une étreinte
Et deux toux une quinte
Je ne sais pas pourquoi
Je ne sais pas où
Cette vie ne nous mène
Qui vivra verra
Qui me le diras
Cette vie ne nous mène à quoi
A quoi? A quoi?

quinta-feira, 3 de abril de 2008

já é quinta?

Às vezes tenho a impressão que algum dia da semana se perdeu, em meio aos papéis da minha mesa.

ANDORINHA

Andorinha lá fora está dizendo:
- "Passei o dia à toa, à toa!"

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa...

[Manuel Bandeira, em Libertinagem, 1930]

quarta-feira, 19 de março de 2008

o amanhã


Oito e dez da noite, saída do metrô, escada rolante à frente, uma multidão. Encaro os degraus da escada central, vazia, a perder de vista - e desisto. Estivesse de tênis, ao menos.

O movimento mecânico de subida causa uma sensação de câmera lenta, o tempo quase parado, cenário a passar por mim bem devagar. Um rosto que se aproxima, em sentido contrário, repentinamente familiar. Traços delicados, fones de ouvido, cabelos compridos - presos? Um olhar, fração de segundo - e passa. Não me viro: receio de estar certa. Desejo de voltar, a escada parece acelerar, de novo a multidão, catracas - passo? Lembro dos amigos, o cinema: sempre, sempre atrasada.

Penso então nos deuses a brincar outra vez comigo, devem estar rindo pra valer. E, pela primeira vez, tento enganá-los. Oculto meu sorriso e cruzo a Paulista a passos largos, como se desse modo alcançasse mais rápido o dia de amanhã.

terça-feira, 11 de março de 2008

desculpa esfarrapada

Tenho andado sem tempo pra postar. Sim, você já leu essa frase em muitos blogues, mas a verdade é esta: o cotidiano nos consome.

Enquanto não vem um texto novo - e olhe que fatos e idéias empilham-se no bloco de notas -, você, leitor mais recente, pode desenterrar posts anteriores e, quem sabe, copiar uma receita de moqueca, ler um conto de Raduan Nassar, exercitar seu lado erótico com os fetiches de David Lynch, discordar da relação entre Phillip Roth e Dostoiévski ou apreciar um poema e assistir a vídeos de Leminski no Youtube.

Se você é um leitor antigo e já leu tudo isso, desculpe aí. O texto tá no forno, mas a lenha só chega no fim de semana.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

só uma saudade


Eles se abraçam, sentindo no peito do outro um tremor descompassado. Uma eternidade, uma vida, um minuto, um segundo, e novamente são dois: frente a frente, o branco imaculado da mesa a separá-los.

Tocam-se, mal se tocando; penetram-se em olhares; entendem-se tanto, mal se falando. Beijam-se em sonhos, deliram versos não-lidos, ouvem canções sem palavras, andam sob a chuva imaginária, molham-se das lágrimas invisíveis. Enfim, se calam, em até breves eternos.

Na saudade de todas as horas, ela pensa em Bentinho; ele, em Capitu.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

as artes de tarsila

Manteau Rouge ( 1923)


Na manhã sonolenta de domingo, quando o edredom se tornara quase um extensão do meu corpo e o barulho de uma forte chuva era um convite a permanecer na cama, só um programa muito bom me tiraria de casa. E era bom mesmo: a exposição Tarsila Viajante, na Pinacoteca, com 37 pinturas e 120 desenhos de Tarsila do Amaral (1886-1973).

Sou apaixonada pela obra de Tarsila e, de pertinho mesmo, só conhecia
duas telas: Operários e Antropofagia. Fiquei chateada quando o milionário e colecionador mui amigo Eduardo Constantini comprou o Abaporu, levando embora do Brasil nossa obra maior do modernismo. Pensei naquela época que, daí em diante, os brasileiros teriam de vê-la na Argentina. Um absurdo, como puderam vender uma obra dessa por uns míseros dólares? US$ 1,3 milhão pra ser mais exato, conforme publicou o Estadão. Uma micharia, perto do que ela representa pra nós. Lembrava disso enquanto ouvia a chuva, que alternava de intensidade: ora torrencial, ora provocativamente diluviana. Não parava um minuto naquela manhã. E o Abaporu lá, a me esperar. Reuni todas as minhas forças e me levantei.

Quando cheguei à Pinacoteca já havia uma fila enorme no estacionamento e outra na bilheteria: casais de namorados, crianças, grávidas, velhos, adolescentes de allstars encharcados, alemães de bermudas, todos inundando a varanda da Pinacoteca com a água que pingava de dezenas de guarda-chuvas. Êta povo teimoso que é o paulistano! Não há temporal que o intimide. Além do mais, dizem que adoramos uma fila. E como tem fila em São Paulo! É por isso que não nos mudamos daqui.

Garanto que ninguém se incomodou de ter se molhado um pouco: a exposição é maravilhosa, as telas enchem nossos olhos de cores e formas. Quanto Brasil naqueles verdes e rosas! Quanta vida nas paisagens urbanas, sons de buzinas e apitos de trens! As montanhas mineiras, as casas de muitas cores, as bananeiras dos nossos quintais de infância; cucas, preguiças e sapos, bichos tão lindos, tão nossos. Os santos, os anjos que olham e rezam por nós, pecadores. As flores que explodem perfumes e cores em rostos incrédulos com tanta beleza.

Dizem que o Abaporu mudou, que seu pé gigante está diferente, que os argentinos ousaram restaurá-lo, naquela terra estranha, onde não existe carnaval, poema-piada, nem Macunaíma. Restaurado por mãos que nunca batucaram um samba, estranhos que
nunca entenderão seu caráter antropófago - será que tiveram a coragem? Acho que Tarsila, Oswald e Mário, se estivessem vivos, nunca o permitiriam. Mas olhei para ele demoradamente, que me pareceu ainda bem canibal. Um pouco mais sério e pensativo, talvez. Rezo para que não levem A Negra daqui. Capaz de inventarem diminuir-lhe os lábios ou o seio farto da mucama. Nem pensar.


ATELIER

Caipirinha vestida por Poiret
A preguiça paulista reside nos teus olhos
Que não viram Paris nem Piccadilly
Nem as exclamações dos homens
Em Sevilha
À tua passagem entre brincos

Locomotivas e bichos nacionais
Geometrizam as atmosferas nítidas
Congonhas descora sob o pálio
Das procissões de Minas

A verdura no azul klaxon
Cortada
Sobre a poeira vermelha

Arranha-céus
Fordes
Viadutos
Um cheiro de café
No silêncio emoldurado

(de Oswald de Andrade, in Pau-Brasil, 1925)


Cartão Postal (1928)


Abaporu (1928)



A Negra (1923)



Antropofagia (1929)



O Lago (1928)



Morro da Favela (1924)


Anjos (1924)


A Lua (1928)


Tarsila Viajante. Pinacoteca. Pça. da Luz, 2, 3324-1000. 3.ª a dom., 10 h às 18 h. R$ 4 (sáb. grátis). Até 16/3.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

sim, eles existem