sábado, 29 de dezembro de 2007

todos os meus ontens



Já falei neste blogue
sobre António Lobo Antunes - escritor português, nascido em 1942, 27 títulos publicados, traduzidos em 16 línguas, ganhador de vários prêmios literários, sendo o mais recente o Prêmio Camões de 2007. A exemplo de W. Faulkner e V. Woolf, desenvolve um tipo de narrativa entrecortada de lembranças, possuindo no entanto um estilo pessoal, inconfundível: ninguém escreve como Lobo Antunes. É, sem dúvida, o maior vulto do romance português recente.

Em Os cus de Judas, romance de 1979, o texto é denso, compulsivo, os longos períodos atravessam páginas, não nos deixando outra alternativa senão segui-los, também compulsivamente. Ao tratar das contradições e sentimentos dos personagens durante a Guerra de Angola - na qual esteve presente, servindo o exército português como médico, entre 1970 e 73 -, Lobo Antunes escreve sobre a impotência do ser humano diante da violência que nos deixa perplexos e retira da vida o próprio sentido.

Esse é o trecho de que mais gosto do livro. Descrições simultâneas, físicas ou de pensamentos; o passado misturado ao presente; os versos da canção Pequeña serenata diurna, de Silvio Rodríguez: múltiplos elementos que se contrapõem e criam um efeito de caleidoscópio, de grande riqueza lingüística e sensorial. Ninguém escreve como Lobo Antunes.


[...] durante a viagem a orquestra do navio tocava tangos mofentos para bodas de prata, embarquei a 6 de Janeiro e na noite do fim do ano tranquei-me no quarto de banho para chorar, um bolo-rei impossível de engulir entupia-me a garganta, empurrei-o a champanhe e ele tombou na barriga no som dos pedregulhos no poço do jardim do avô, plof!, provocando círculos concêntricos no lago da canja do jantar, o poço sob as árvores ao pé do muro para a estrada onde se ia fumar às escondidas, o caseiro tirou o chapéu e explicou respeitosamente a coçar a cabeça O que a gente precisa é que alguém tomar conta de nós o menino não acha?, e se vier alguém tomar conta de nós o que pensa você que começaria por fazer, levar-me para sua casa, levá-la para minha casa, lavar-nos os dentes, estender-nos na cama, e falar-nos em voz baixa até adormecermos, falar-nos de serenidade e alegria até adormecermos, falar-nos do primeiro de Maio de 74 que os políticos inquinavam já da massa folhada sem recheio dos seus dircursos veementes, mas onde crescia nas ruas uma irresistível fermentação de esperança, os ministros de Caetano borravam-se de medo na Madeira, os pides borravam-se de medo em Caxias, uma festa de labaredas vermelhas alastrava triunfalmente em Lisboa, quiero que me perdones los muertos de mi felicidad, los muertos de mi felicidad no cacimbo de Angola, seis meses de cacimbo enevoado e capim amarelo a arder ao longe, perdoe-me os mortos da minha felicidade quando lhe seguro na mão, quando meus joelhos apertam os seus, quando a minha boca vai tocar na sua e os olhos se fecham devagar como corolas nocturnas, todos os meus ontens se encontram presentes neste beijo, talvez que as múmias do bar se esfarelem como os vampiros à aproximação do dia num concerto de dobradiças que se quebram, todos os meus ontens, percebe?, O que a gente precisa, menino, garantia o caseiro, é que venha alguém cuidar de nós, [...]

[In Os cus de Judas, de António Lobo Antunes - Rio de Janeiro: Objetiva, 2003 - pág. 75 e 76]

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

um natal diferente



Gosto de reler esta crônica do Ferreira Gullar na época de Natal. Ela me faz ver que momentos difíceis podem ser superados e depois lembrados com humor, quem sabe até isentos de mágoas. Sem o humor e a esperança, a vida é pequena. E muito chata.

Um Natal diferente

Naquele ano de 1968, passei o Natal em cana.
Não diria que foi um Natal festivo, mas, dentro das possibilidades, eu e meus companheiros de prisão tratamos de fazer jus à data, gozando a situação em que nos encontrávamos. No nosso xadrez -o X 3- havia oito presos, Paulo Francis, eu e mais seis; no xadrez ao lado, estavam, além de Caetano Veloso e Gilberto Gil, vários jovens, entre os quais um que se chamava Perfeito Fortuna, o líder deles. Pela grade da janela, que dava para os fundos da prisão, nos comunicávamos com nossos vizinhos que não paravam de inventar encrencas e cantar. Já minha preocupação era por ordem em nosso convívio e achar um jeito de encher o tempo. Daí ter proposto que cada um contasse coisas interessantes de sua vida, relacionadas ou não com a luta política.
Uma das figuras mais curiosas do grupo era um sujeito alto e ossudo que se chamava Antônio Calado, homônimo do escritor e que, devido a isso, tinha sido preso. Quando soube que eu conhecia o romancista, implorou-me para dizer aos militares que ele não era o outro Callado. Mas como atendê-lo se até aquele momento estávamos todos incomunicáveis? Quando, dias depois, fomos levados um a um ao interrogatório, pude fazer o que me pedira. Disse maldosamente ao oficial que me interrogava: "Ele se parece tanto com o escritor Antônio Callado quanto um jabuti se parece com um lápis". O oficial me fitou irritado mas, no dia seguinte, mandou soltá-lo.
Fui preso no dia 13 de dezembro, em minha casa, no começo da noite, por um oficial do Exército, que se tornou mais tarde conhecido como um dos chefes do jogo do bicho no Rio de Janeiro: o capitão Guimarães. Eu e Teresa estávamos nos preparando para ir ao cinema, junto com Vianinha, João das Neves e Pichín Plá, nossos companheiros do Grupo Opinião. João e Pichín já haviam chegado. Quando soou a campainha da porta, fui abrir pensando que era o Vianinha, mas deparei-me com dois soldados do Exército.
- É aqui que mora o senhor Ferreira Gullar?
- Do que se trata?
- É o senhor?
- Sou eu mesmo, mas do que se trata?
- Tenho um ordem de prisão contra o senhor -disse o capitão, forçando a entrada.
Neste instante, Teresa chegou à sala. Ao tomar conhecimento da situação, perguntou ao oficial.
- O senhor tem uma ordem de prisão?
- A ordem é verbal. Ele está preso.
- Mas isso é ilegal, disse ela.
A televisão estava ligada e nela apareceu a figura do ministro da Justiça lendo um documento.
- Escute, falou o capitão, apontando para a televisão.
O ministro lia o Ato Institucional n.º.5, que suspendia todos os direitos constitucionais do cidadão. João das Neves e Pichín Plá assistiam àquilo apavorados, temendo que sobrasse para eles, já que estávamos todos num mesmo barco. Nossa preocupação era agora com o Vianinha, que poderia estar sendo procurado também.
- Vamos inspecionar a casa, disse o capitão, e se encaminhou para o corredor.
João e Pichín aproveitaram para dar o fora.
- Fiquem esperando pelo Vianinha lá embaixo e avisem a ele, adverti eu.
Os dois saíram. Eu entrei na cozinha, abri a geladeira e joguei dentro dela minha caderneta de endereços, a fim de que não caísse nas mãos dos milicos. Em seguida, sussurrei a Teresa que, depois que me levassem, telefonasse para Mário Cunha, na sucursal do "Estadão", informando de minha prisão.
Enquanto isso, eles vasculhavam a casa mas, ao tentarem entrar no quarto dos meninos, Luciana, minha filha, que tinha então 13 anos, os impediu e fechou-se no quarto. A mando da Teresa, ela tinha levado para lá alguns exemplares do jornal do Partido.
O capitão, então, voltou-se para a estante do corredor e começou a catar ali os livros que supostamente serviriam para me inculpar. Ele ia olhando a capa dos livros e os devolvendo à estante. Como ali estavam os livros sobre arte, a sua busca era infrutífera. Até que se deparou com uma pasta, abriu-a e sorriu satisfeito. Tinha encontrado o que buscava. Chamou o soldado e entregou-lhe a pasta.
- Isto vamos levar, disse ele ao soldado.
Eu, que tinha reconhecido a pasta, aproximei-me:
- Por que vai levar? São os originais de um livro meu sobre arte.
- Sobre arte?, disse ele ironicamente- Sei...
De fato, eu havia reunido ali uma série de artigos que publicara, anos atrás, no Suplemento Dominical do "Jornal do Brasil", sobre os movimentos da arte contemporânea e pusera o seguinte título: "Do Cubismo à Arte Neoconcreta". Deveria entregar aqueles originais, na semana seguinte, à Editora Ler.
Inutilmente tentei explicar ao capitão que aqueles artigos nada tinham a ver com política. O soldado os levou junto com livros e revistas considerados subversivos. Só depois de algum tempo entendi o motivo daquela decisão. Ele achou que a palavra "cubismo" dizia a respeito a Cuba.
E essa foi a anedota que nos fez rir muito naquela noite de Natal que passamos no xadrez da Vila Militar.

[publicada na Folha de São Paulo, em 25/12/2005]

sábado, 15 de dezembro de 2007

a matéria-prima do poeta


Este é para mim um dos mais perfeitos e belos poemas da nossa língua, se não for o mais perfeito e belo.

Não que eu conheça poemas suficientes para poder afirmar isso - ainda pretendo conhecer muitos! -, mesmo assim algo me diz que dificilmente mudarei de opinião.

Foi como um amor maduro, que se constrói aos poucos: não gostei dele facilmente, não foi um encantamento à primeira vista. Eu o conheci ainda menina e o achei bonito, muito mesmo, mas rejeitei seus imperativos, sua aparente racionalidade. Felizmente, ao contrário de nós, mortais, um belo poema não envelhece. Paciente, ele permanece a nossa espera.

Fui conquistada quando estava pronta para ele, depois de idas e vindas, desprovida de orgulho, aberta ao riso e à dor. Pareceu-me outro, não o reconheci - nem ele a mim. Daí em diante, ficou comigo. E ficará.


Procura da poesia


Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão
[lírica.


Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro
são indiferentes.
Não me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto
[à linha de espuma.


O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.


[do livro A Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade, in Reunião, 10 livros de poesia, José Olympio, 1974]


Quanto ao título do post anterior, confesso: eu menti.