sábado, 1 de setembro de 2007

a lolita de vinicius

Reler Vinicius de Moraes nunca pode ser encarado como uma obrigação, inda mais quando se trata de selecionar poemas para um prazeiroso (mas árduo!) trabalho de literatura. Por caminhos tortuosos, acabei encontrando também uma crônica muito simpática, a começar do título: Brotinho indócil. Essa expressão, brotinho, muito usada na época em que foi escrita (o texto é de 66), me fez lembrar de Roberto Carlos, da mini-saia, da Jovem Guarda e aquelas coisas inocentes que a gente associa à década de 60.

Se bem que foi nessa década que se popularizaram as drogas
- revolucionando a arte e o comportamento social - e a pílula anticoncepcional, esta mudando até as relações de trabalho, muito além do sexo. Foram também os terríveis anos da Guerra do Vietnã, com os EUA usando o napalm contra populações civis. Ah! e o golpe de 64? Bem, pensando bem, não foi uma década tão inocente assim.

O texto de Vinicius - uma delícia de texto - me fez sentir uma certa nostalgia. Mas não me venham dizer que aqueles tempos é que eram legais. O hoje é sempre melhor.

BROTINHO INDÓCIL

A insistência daqueles chamados já estava me enchendo a paciência (isto foi há alguns anos). Toda a vez era a mesma voz infantil e a mesma teimosia:
— Mas eu nunca vou à cidade, minha filha. Porque é que você não toma juízo e não esquece essa bobagem...
A resposta vinha clara, prática, persuasiva:
— Olha que eu sou um broto muito bonitinho... E depois, não é nada do que você pensa não, seu bobo. Eu quero só que você autografe para mim a sua "Antologia Poética", morou?
Morar eu morava. É danadamente difícil ser indelicado com uma mulher, sobretudo quando já se facilitou um bocadinho. Aventei a hipótese:
— Mas. . . e se você for um bagulho horrível? Não é chato para nós ambos?
A risada veio límpida como a própria verdade enunciada:
— Sou uma gracinha.
Mnhum - mnhum. Comecei a sentir-me nojento, uma espécie de Nabokov "avant-la-lettre", com aquela Lolita de araque a querer arrastar-me para o seu mundo de ninfete. Não, resistiria.
— Adeus. Vê se não telefona mais, por favor. . .
— Adeus. Espero você às 4, diante da ABI. Quando você vir um brotinho lindo você sabe que sou eu. Você, eu conheço. Tenho até retratos seus. . .
Não fui, é claro. Mas o telefone no dia seguinte tocou.
— Ingrato . . .
— Onde é que você mora, hein?
— Na Tijuca. Por quê?
— Por nada. Você não desiste, não é?
— Nem morta.
— Está bem. São 3 da tarde; às 4 estarei na porta da ABI. Se quiser dar o bolo, pode dar. Tenho de toda maneira que ir à cidade.
— Malcriado. . . Você vai cair duro quando me vir.
Desta vez fui. E qual não é minha surpresa quando, às 4 em ponto, vejo aproximar-se de mim a coisinha mais linda do mundo: um pouco mais de um metro e meio de mulherzinha em uniforme colegial, saltos baixos e rabinho de cavalo, rosto lavado, olhos enormes: uma graça completa. Teria, no máximo, 13 anos. Apresentou-me sorridente o livro:
— Põe uma coisa bem bonitinha para mim, por favor?...
E como eu lhe respondesse ao sorriso:
— Então, está desapontado?
Escrevi a dedicatória sem dar-lhe trela. Ela leu atentamente, teve um muxoxo:
— Ih, que sério . . .
Embora morto de vontade de rir, contive-me para retorquir-lhe:
— É, sou um homem sério. E daí?
O "e daí" é que foi a minha perdição. Seus olhos brilharam e ela disse rápido:
— Daí que os homens sérios podem muito bem levar brotinhos ao cinema...
Olhei-a com um falso ar severo:
— Você está vendo aquele Café ali? Se você não desaparecer daqui imediatamente eu vou àquele Café, ligo para sua mãe ou seu pai e digo para virem buscar você aqui de chinelo, você está ouvindo? De chinelo!
Ela me ouviu, parada, um arzinho meio triste como o de uma menina a quem não se fez a vontade. Depois disse, devagar, olhando-me bem nos olhos:
— Você não sabe o que está perdendo. . .
E saiu em frente, desenvolvendo, para o lado da Avenida.

In Para uma menina com uma flor. Rio de Janeiro: Edit. do Autor, 1966.