segunda-feira, 29 de outubro de 2007

só para loucos



TRATADO DO LOBO DA ESTEPE


"Era um vez um certo Harry, chamado o Lobo da Estepe. Andava sobre duas pernas, usava roupas e era um homem, mas não obstante era também um lobo das estepes. Havia aprendido uma boa parte de tudo quanto as pessoas de bom entendimento podem aprender, e era bastante ponderado. O que não havia aprendido, entretanto, era o seguinte: estar contente consigo mesmo e com a a sua própria vida. Era incapaz disso, daí ser um homem descontente. Isso provinha, decerto do fato de que, no fundo de seu coração, sabia sempre (ou julgava saber) que não era realmente um homem e sim um lobo das estepes. As pessoas argutas poderão discutir a propósito de ser ele realmente um lobo, se ter sido transformado, talvez antes de seu nascimento, de lobo em ser humano, ou de ter nascido homem, porém dotado de alma de lobo ou por ela dominado; ou, finalmente, indagar se essa crença de que ele era um lobo não passava de um produto de sua imaginação ou de um estado patológico.

[...] Com o nosso Lobo da Estepe sucedia que, em sua consciência, vivia ora como lobo, ora como homem, como acontece com todos os seres mistos. Ocorre, entretanto, que quando vivia como lobo, o homem nele permanecia como espectador, sempre à espera de interferir e condenar, e quando vivia como homem, o lobo procedia de maneira semelhante. Por exemplo, se Harry, como homem, tivesse um pensamento belo, experimentasse uma sensação nobre e delicada, ou praticasse uma das chamadas boas ações, então o lobo, em seu interior, arreganhava os dentes e ria e mostrava-lhe com amarga ironia o quão ridícula era aquela nobre encenação aos seus olhos de fera, aos olhos de um lobo que sabia muito bem em seu coração o que lhe convinha, ou seja, caminhar sozinho nas estepes, beber sangue vez por outra ou perseguir uma loba. Toda ação humana parecia, pois, aos olhos do lobo horrivelmente absurda e despropositada, estúpida e vã. Mas sucedia exatamente o mesmo quando Harry sentia e se comportava como lobo, quando arreganhava os dentes aos outros, quando sentia ódio e inimizade a todos os seres humanos e a seus mentirosos e degenerados hábitos e costumes. Precisamente aí era que a parte humana existente nele se punha a espreitar o lobo, chamava-o de besta e de fera e o lançava a perder, amargurando-lhe a satisfação de sua saudável e simples natureza lupina."


[O lobo da estepe, de Herman Hesse, trad. de Ivo Barroso, Editora Civilização Brasileira, 1969, 3ª edição.]

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

um jacto d'água fria

Ser uma pessoa otimista ajuda em quê? Às vezes, em nada.
Saber que uma pessoa linda e jovem, com muitos sonhos para o futuro, tem uma doença grave ou que outra, que sempre deu duro a vida inteira no trabalho está envelhecendo, sem condições para sobreviver: estar próximo a elas estremece nossas convicções, nos faz parar para pensar - e para sentir.

Volto a Gonçalo M. Tavares. Quando li esse texto/poema da primeira vez, achei-o ácido e pessimista. Aos poucos, nas leituras seguintes, fui mudando minha opinião; cheguei mesmo a ter um carinho por essas palavras duras, como quando a gente gosta de alguém rude, arredio, mas encantador. Nos últimos dias, elas me vieram à lembrança e no bonito idioma de Portugal me pareceram mais verdadeiras que nunca.

Gostava de vos dizer uma coisa para terminar.

Às vezes tenho medo. Muito medo.
Às vezes, sofro.
Às vezes, penso nas pessoas que amo e penso na possibilidade
de as perder.
Às vezes vejo alguém doente e fico incomodado.
Pode não ser um amigo ou um familiar.
Posso estar a vê-lo pela primeira vez.
Mas fico incomodado.
Aquela doença pertence-me.

Todas as doenças pertencem a toda gente.
Todos os sofrimentos pertencem a toda gente.
Todas as mortes pertencem um pouco a toda gente.
Às vezes sinto isso muito,
outras vezes sinto menos.
Quando sinto menos posso preocupar-me com o mundo,
brincar com a poesia,
com a filosofia e com as palavras.
Mas quando sinto, deixo de conseguir pensar.
Quando sofro ou sinto o que alguém sofre, deixo mesmo
de querer ser inteligente.
Deixo de querer parecer inteligente.
Se estivermos cheios a sentir, não temos espaço para pensar.
Não fazem sentido as lógicas,
as filosofias,
as discussões.
Todo o nosso corpo sente.
E o que resta? Nada.
Só existe aquela morte, aquela doença, aquela velhice.
Só aquele pai que amo e que está a envelhecer. Só aquela mãe
que amo e que está a envelhecer.
Só aquele amigo que se tornou amargo
porque a mulher o deixou.
Só o amor e a falta de amor.
As mulheres que nos enganam e as mulheres que são enganadas,
as mulheres e os homens que enganam.
Os amigos que deixam de o ser,
Alguns inimigos que morrem, e temos pena.
Que importa o resto?
Onde está o livro importante?
O filme que resolve?
Podemos chorar à frente de um quadro, mas não resolve nada.
Podemos pintar um quadro, escrever um poema, mostrar às
mulheres bonitas como somos bonitos, exibir o nosso corpo,
mas que adianta?
Estamos sozinhos.
Se não estamos, vamos estar.
Os amigos vão-nos deixando, vão-nos deixar.
Vão morrer ou nós vamos morrer.
Ou vão deixar de nos telefonar, ou então deixamos de lhes
querer telefonar.
Estamos sozinhos. As pessoas que amo vão morrer.
Os livros não resolvem nada. A poesia é bonita e por vezes
descansa, acalma, mas não resolve nada, não resolve nada.
Somos artistas ou não somos, e qualquer coisa que seja não
adianta nada e nada impede.
Escrevemos poemas, mas não ajudam ninguém.
Escrevemos peças de teatro, sorrimos, tentamos pensar,
tentamos ter idéias, tentamos distrair as pessoas, tentamos
fazer pensar as pessoas, tentamos fazer chorar as pessoas, e
isso é bom, e pode até ser bonito, mas não adianta nada,
não resolve nada,
não adianta nada.

(in O homem ou é tonto ou é mulher, Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005)

sábado, 20 de outubro de 2007

a obsessão, o tempo e o desejo


Esta semana um fato me trouxe certa satisfação e deu o mote para o texto que começo aqui: dois escritores da lista dos meus preferidos foram premiados no Prêmio Portugal Telecom de Literatura 2007, o maior prêmio literário do país e que a partir desta edição incluiu
livros escritos em língua portuguesa em qualquer país, desde que editados no Brasil.

O grande vencedor foi Gonçalo M. Tavares, escritor português nascido em Angola, de 37 anos, por sua obra Jerusalém, publicada no Brasil pela Companhia das Letras. Levou 100 mil reais, uma soma considerável, tanto aqui como em Portugal.

O segundo lugar, prêmio de 35 mil reais, foi para Dalton Trevisan, por seu livro Macho não ganha flor (Record). É a segunda vez que o escritor é premiado pela Portugal Telecom: em 2003, ganhou o primeiro lugar com o livro Pico na Veia (dividindo a premiação com Bernardo Carvalho). Para não romper a tradição, o recluso Trevisan não compareceu à cerimônia de premiação, preferindo mandar uma mensagem: "Só a obra interessa. O autor não vale o personagem. O conto é sempre melhor que o contista. Vampiro sim, de almas. Espião de corações solitários, escorpião de bote armado. Eis o contista. Só invente o vampiro que exista. Com sorte, você adivinha o que não sabe. Para escrever o menor dos contos, a vida inteira é curta. [...] Quem lhe dera o estilo do suicida em seu último bilhete."

Dalton Trevisan
é uma paixão antiga, leio suas histórias há tanto tempo que parece que o conheço desde criança - o que não é absolutamente a verdade. Seus contos curtos e ácidos, de Joões e Marias, personagens universais de segredos inconfessáveis em seus dramas cotidianos , não são propriamente histórias para crianças. O primeiro livro que li dele foi Guerra conjugal. Daí pra frente, devorei quase todos os outros. Trevisan é um obsessivo pela síntese, pela linguagem concisa do conto e se aprimora a cada obra publicada.

Gonçalo Tavares é outro obsessivo (a literatura requer obsessão?). Ao falar de suas influências, citou um ditado chinês que é quase uma maldição: "não te atrevas a escrever um livro antes de ler mil ". Com o prêmio, disse que pretende comprar tempo:
" - Tenho três filhos. Isso em iogurte e leite se vai. O principal que eu quero é comprar tempo. Não quero Mercedes, não quero ser rico. Quero ter tempo. " O escritor, mesmo consagrado, com mais de 20 livros publicados em 12 países, não vive só de literatura. Divide seu tempo entre aulas em universidades e suas obras. Publicou sua primeira obra em 2001 e, nos três anos seguintes, teve 14 livros publicados, entre romances, poesia, teatro e contos.

O poema abaixo é do livro O homem ou é tonto ou é mulher (Casa da Palavra, 2005) que, a princípio, pode ser classificado dentro do gênero da poesia, mas que se revela também um monólogo dramático em versos - o livro já foi até transformado em peça teatral. A originalidade de sua produção literária é marcada por essa característica: a de contrariar classificações de gênero.


O desejo estraga tudo.
Tenho 32 planos.
52 projetos.
30 estruturas perfeitas.
O dia é claro e calmo e tem 24 horas.
De repente chega o desejo e estraga tudo.
O dia fica claro demais.
Calmo de menos.
E já não há 24 horas.
O tempo inteiro concentra-se num ponto.
Aqui. (aponta para o sexo)

Tenho o tempo concentrado aqui.
Muitos minutos concentrado no sexo.
O desejo é isto.
Ter um órgão a mais para o tempo que faz lá fora.
Lá fora o tempo tem 24 horas.
Cá dentro é bem mais pequeno.
O tempo entra todo pelo sexo e quer deixar de existir.
O esperma é o suicídio do tempo.
O esperma sobe para a torre e atira-se lá de cima.
É um suicídio.
Um suicídio do tempo.

O desejo estraga tudo.

Tinha tantos planos racionais para hoje.

Os números eram quase perfeitos.

O desejo estraga tudo.


A poesia de Gonçalo Tavares, mesmo sendo ostensivamente uma poesia de idéias, também é, em grande medida, um trabalho de requintado lirismo. Um lirismo que tenta escapar, racionalmente, do desamparo das emoções.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

PIAF - a vida que daria um filme


Ela tinha apenas 1,47 de altura, um aspecto doentio e cabelos escassos. Mas sua voz tornou-a um mito: quando cantava, era como um facho de luz que atingia a todos, sem distinção.

Não tem como não nos emocionarmos: o filme é fantástico, a interpretação de Marion Cotillard é inacreditável, as músicas são lindas e nostálgicas; o clima noir e a construção narrativa - alternando tempos e espaços diferentes da vida trágica de Edith Piaf - são uma aula de cinema. Não foi por acaso que, depois da estréia, houve na França uma verdadeira febre Piaf, com reedições de todos os tipos, biografias e caixas com CDs da cantora.

O mais incrível é sentir, na voz tão cheia de emoções de Piaf, que as canções antigas se tornam presentes, vivas, mesmo 60 anos depois. Essa habilidade de transportar sentimentos através do tempo, é o que atesta o poder da música: toda vez que ouvimos uma grande canção, ou aquela que tem um significado especial para nós, somos transportados a outro mundo; sentimos conforto ou angústia, revivemos emoções esquecidas, saímos da rotina, lembramos de nossos sonhos.

Fazia tempo que eu não chorava assistindo a um filme. Quebrei minha série invicta de vários anos, ao vê-la cantando, na última cena, Non, je ne regrette rien - uma grande canção. Disfarçadamente, como muitos que demoraram a levantar de suas poltronas, fiquei lendo os créditos.

http://www.edithpiaf.com.br

domingo, 7 de outubro de 2007

frisson na música pop


Radiohead, o grupo inglês que lançou em 1997
OK Computer, álbum considerado um dos mais influentes e inovadores da história da música pop - só perdendo para Sgt. Pepper's -, está causando um verdadeiro frisson e deixando seus fãs numa expectativa doentia. Desde 1º de outubro, as comunidades do Orkut da banda no mundo inteiro fervem com comentários e informações sobre o assunto. E na mídia, uma enxurrada de artigos comentam a novidade: Time, NME, Blitz (Portugal), Folha de São Paulo, Estadão, só pra citar alguns. Dos que li, o mais completo foi o da revista Carta Capital :

Carta Capital,
Edição 465 - 05/10/2007

A revolução comercial do Radiohead

por Felipe Marra Mendonça

O que começou com um simples anúncio num blog promete estabelecer um novo paradigma no mercado da música digital

Jonny Greenwood, guitarrista da banda inglesa Radiohead, escreveu na segunda-feira 1º, no blog do grupo, a seguinte mensagem: “Olá a todos. Bem, terminamos o novo disco e ele sai em dez dias. Nós o chamamos de In Rainbows. Um abraço de todos nós”.

O link contido no nome do novo álbum leva para um site (www.inrainbows.com), onde é possível comprá-lo em duas versões, discbox e download. A primeira é física. Os fãs que pagarem cerca de 160 reais vão poder baixar o álbum a partir de 10 de outubro e depois receber uma caixa com a gravação em CD e dois discos de vinil, além de um segundo CD com novas músicas, fotografias, artes e um livro de capa dura.

A segunda, download, é revolucionária nem tanto pelo conteúdo, mas pelo conceito que inaugura. O usuário pode baixar o disco inteiro e pagar o que considerar justo. Se nada pagar, o site cobra uma taxa administrativa pela transação de 1,70 real. A banda chega a esclarecer o conceito para consumidores mais incrédulos: “O preço é com você, de verdade, é o que você quiser”.

Isso acontece num mercado em que as vendas físicas caíram depois da combinação entre a popularização de gravadores de CDs em computadores e a massificação do acesso à internet. Houve uma queda de quase 5%, nos EUA, em 2006. Em contraste, as vendas de música digital aumentaram 65%, com 582 milhões de faixas e mais de 33 milhões de discos vendidos, mais do que o dobro do ano anterior, segundo a Nielsen Soundscan.

O interesse por In Rainbows foi tanto que o site ficou lento e Greenwood, o guitarrista, deixou um recado informando que estava tudo congestionado, “mais movimentado do que eles (os técnicos) esperavam. Então, por favor, tenham paciência conosco, tudo deve ficar normal rapidamente. Sei que pareço um segurança. Fiquem por trás dos cordões de isolamento. Obrigado pela paciência e pelo interesse no disco”.

Ao final do primeiro dia de vendas, mais pessoas tinham comprado a versão física do que a versão virtual, o que indica a fidelidade dos fãs que aguardavam há mais de quatro anos pelo novo lançamento. Um porta-voz da banda disse que a motivação principal era conseguir fazer com que as novas músicas chegassem aos fãs de modo mais rápido do que os três ou seis meses pedidos pelas gravadoras para orquestrar um lançamento comercial.

A imprensa britânica acredita que o Radiohead deve superar o modelo de contrato com gravadoras (tendo terminado o antigo acordo com a EMI) e “estabelecer um valor monetário na apreciação do público pela arte”. E mais: 1º de outubro foi “o dia da morte das gravadoras”.

A banda tinha se recusado a entrar na loja virtual de músicas da Apple, a iTunes Store, por acreditar que a prática de vender faixas quebrava a integridade artística de um álbum inteiro.

Resta agora ver que tipo de reação o lançamento de In Rainbows deve gerar no mundo digital. Se os usuários pagarem um “preço justo” pelo disco, outros artistas talvez se rendam finalmente à música digital, como os Beatles, cujos membros sobreviventes ainda não dispuseram seu catálogo para venda on-line.


Eu comprei o meu download por 1 libra. Achei um preço justo. E vc, quanto se dispõe a pagar?