domingo, 26 de agosto de 2007

a vida às vezes é doce

Quem me conhece sabe que troco qualquer programa por outro que envolva música. E nem precisa me conhecer bem, pra saber que sou tiete do Lobão: basta ver o nome do blogue.
Domingo apertado, muito trabalho acumulado, mas tinha show - do Lobão! E ao meio-dia, o que não combina muito com ele - nem comigo. Eu fui, claro.

Foi muito legal: ele é uma figuraça. Além de sempre ter gostado muito de suas músicas, admiro sua coragem e independência. E o fato de ter sobrevivido. Muitos artistas da geração dele, como seus parceiros Júlio Barroso e Cazuza, não o conseguiram.

Mas ele está aí, mais vivo que nunca e com uma energia incrível. Como nos velhos tempos. Tempos de que a letra de “Vou te levar” me faz lembrar:

Pensar em tudo que se passou, que se pôde sonhar e não realizou
A vida tentando escapar, mas não por agora
Ao mesmo tempo tanta coisa se amou, se refez, se perdeu, se conquistou,
Retratos estampados do nosso amor, em preto e branco, pregados na parede,
Revelando pra sempre a gente, nosso orgulho um do outro, olhando pra lente
como quem dissesse "não queremos mais nada nesse mundo"
e que me lembrasse a cada instante que valeu a pena cada lance
e valerá, tenha certeza, pra toda a vida.
Vou levar, vou te levar
pra onde for, vou te levar

Aos que o criticam de ter se rendido ao mainstream, por ter feito o Acústico na MTV e ter voltado ao esquema profissional das gravadoras, ele tem uma resposta pronta, da qual fazem parte alguns palavrões impublicáveis. É isso aí, cara.

domingo, 19 de agosto de 2007

eu não ia postar hoje

No meio de um trabalho de Língua Francesa, paro, procurando inspiração e descanso em sites de leitura indispensável. Ao ler os blogues, sinto-me como se visitasse amigos, embora de algumas casas nunca tenha visto os donos. Para minha surpresa, descubro que meu blogue foi citado no Digestivo Cultural. Uma gentileza do editor, Julio Daio Borges, que um dia espero conhecer pessoalmente. Julio recentemente escreveu um artigo muito interessante sobre literatura e internet, no caderno Link, do Estadão.
Leio sempre o Digestivo Cultural - revista cultural eletrônica que alcança o impressionante número de 339 mil leitores no mês - mas confesso que nunca consigo degustá-lo integralmente: a eterna questão da falta de tempo. Só fui ler o post um mês depois.

Considero-me ainda uma alienígena nessa blogosfera: caí aqui nem sei como, há uns três meses, e ainda estou reconhecendo o terreno, aprendendo como caminhar nesta gravidade um tanto diferente. Mas já deu pra sacar que uma das coisas mais legais é a via de comunicação que se estabelece entre blogueiros e leitores, muitos destes também blogueiros. Mesmo no meio de um trabalho de Francês, dentro de uma madrugada fria e deliciosamente silenciosa, a gente sente uma energiazinha vindo pelo ar.

E eu nem ia postar hoje.

domingo, 12 de agosto de 2007

a literatura é importante?



Não há no cenário literário brasileiro dos últimos quarenta anos um nome mais significativo que o de Raduan Nassar. Com apenas dois livros, Lavoura Arcaica (1975) e Um Copo de Cólera (1978), Nassar arrebatou vários prêmios literários e ganhou o respeito da crítica como um escritor de importância comparável à de Guimarães Rosa, Rubem Fonseca e Clarice Lispector. Publicados também na França, Alemanha e Espanha, seus livros trazem elementos da literatura clássica mesclando a dramaticidade desta com os da tradição brasileira e universal. O texto de grande força e densidade poética cria imagens ora intimistas, ora impactantes, e essa característica, aliada à visão e direção talentosa de Luiz Fernando de Carvalho, talvez explique o sucesso que a adaptação de Lavoura Arcaica fez no cinema.

Lavoura Arcaica possui a característica comum a toda grande obra de arte: a de nunca se esgotar. Passados 32 anos de sua publicação é, sem dúvida, um clássico e comprova sua força, à medida que ao longo dos anos vem criando possibilidades múltiplas de análises e estudos. No seu sentido dramático, filia-se à grande tradição que deu origem a obras como Édipo Rei e Hamlet. Ao mergulhar nas profundezas do inconsciente, nos vãos escuros da família, extrapolando-os à civilização ou à não-civilização que a rodeia, o autor consegue, partindo de um plano rural e particular, atingir o universal.

A trajetória de Nassar como escritor, no entanto, foi meteórica. Em 1984, então com 48 anos, ele comprou a fazenda Lagoa do Sino, perto da cidade de Buri, a 250 quilômetros de São Paulo e passou a se dedicar ao cultivo de arroz, milho e feijão. Espantou a todos, logo em seguida, ao anunciar que iria parar de escrever. "Estou dando uma virada radical na minha vida e começo a me perguntar como é que pude entrar por esse cano da literatura. Minha cabeça fervilha com outras coisas, ando às voltas com agricultura e pecuária, procurando me enfronhar sobre tratores e implementos. Tudo isso que nada tem a ver com o pasto das idéias", declarou na época, em um de seus raros depoimentos. "Em termos estruturais, não considero o processo de invenção da literatura diferente do processo de invenção em outros campos da atividade humana. Já disse que qualquer indivíduo, a menos que seja bloqueado pelas condições de vida, é capaz de inventar, que inventar não é exclusivo de uns poucos", justificou em 1992. Alfinetou ainda os que lhe exigiam novas produções. "Não existem só os pedantes que se perdem num cipoal de palavras para dizer ninharias, existem também orelhas prolixas, sempre dispostas a ouvir as maiores lorotas."

Volta e meia nos deparamos com essa questão: a literatura é tão importante assim, como fazemos questão de alardear? As grandes obras são capazes de mudar vidas - mudou a minha, prometo que qualquer dia conto essa história -, mudar até a história de nações e muitos compartilham dessa opinião. Mas parece que alguns escritores acreditam que tão ou mais importante que a literatura é a vida real: criar bois, plantar milho, lutar em uma revolução. Escrever é um ato angustiante demais, ao qual poucos conseguem sobreviver? Ou seria tão banal quanto regar um jardim ou lavar pratos, que podemos simplesmente optar por não fazê-lo mais? Eu o vejo como uma paixão, que arrebata e consome. Como começa e por que termina, difícil explicar. Essa contradição é que faz da literatura um mistério insondável e fascinante.

Em 1997, a Companhia das Letras reuniu em um livro entitulado Menina a Caminho, cinco narrativas curtas que, com exceção de um texto inédito - Mãozinhas de Seda, produzido em 1996 -, foram todas escritas por Raduan Nassar nas décadas de 60 e 70. É desse livro que extraí o conto Aí Pelas Três da Tarde, bem diferente do estilo denso e dramático de Lavoura Arcaica. O conto sugere o escape do previsível, a recusa das situações confortáveis e asfixiadas pelo tédio.


AÍ PELAS TRÊS DA TARDE

Nesta sala atulhada de mesas, máquinas e papéis, onde invejáveis escreventes dividiram entre si o bom senso do mundo, aplicando-se em idéias claras apesar do ruído e do mormaço, seguros ao se pronunciarem sobre problemas que afligem o homem moderno (espécie da qual você, milenarmente cansado, talvez se sinta um tanto excluído), largue tudo de repente sob os olhares a sua volta, componha uma cara de louco quieto e perigoso, faça os gestos mais calmos quanto os tais escribas mais severos, dê um largo "ciao" ao trabalho do dia, assim como quem se despede da vida, e surpreenda pouco mais tarde, com sua presença em hora tão insólita, os que estiveram em casa ocupados na limpeza dos armários, que você não sabia antes como era conduzida. Convém não responder aos olhares interrogativos, deixando crescer, por instantes, a intensa expectativa que se instala. Mas não exagere na medida e suba sem demora ao quarto, libertando aí os pés das meias e dos sapatos, tirando a roupa do corpo como se retirasse a importância das coisas, pondo-se enfim em vestes mínimas, quem sabe até em pêlo, mas sem ferir o decoro (o seu decoro, está claro), e aceitando ao mesmo tempo, como boa verdade provisória, toda mudança de comportamento. Feito um banhista incerto, assome em seguida no trampolim do patamar e avance dois passos como se fosse beirar um salto, silenciando de vez, embaixo, o surto abafado dos comentários. Nada de grandes lances. Desça, sem pressa, degrau por degrau, sendo tolerante com o espanto (coitados!) dos pobres familiares, que cobrem a boca com a mão enquanto se comprimem ao pé da escada. Passe por eles calado, circule pela casa toda como se andasse numa praia deserta (mas sempre com a mesma cara de louco ainda não precipitado) e se achegue depois, com cuidado e ternura, junto à rede languidamente envergada entre plantas lá no terraço. Largue-se nela como quem se larga na vida, e vá ao fundo nesse mergulho: cerre as abas da rede sobre os olhos e, com um impulso do pé (já não importa em que apoio), goze a fantasia de se sentir embalado pelo mundo.

(in "Menina a Caminho", Companhia das Letras - São Paulo, 1997)

Leia também - se puder escapar do tédio - o conto Hoje de Madrugada, do mesmo livro: um relato contundente do fim de uma relação onde os gestos imaginados, os silêncios sugeridos, aquilo que não é dito, competem em densidade dramática com as palavras realmente ditas. É mágico. Torço para que Raduan Nassar volte a fazer literatura, entre as safras de milho do seu sítio.

[foto de Raduan: publicada em Cadernos de Literatura Brasileira, Instituto Moreira Salles, nº 2, setembro 1996]

sábado, 4 de agosto de 2007

o verdadeiro sentido

GUARDAR

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.

Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.

(Antonio Cícero)