sábado, 20 de outubro de 2007

a obsessão, o tempo e o desejo


Esta semana um fato me trouxe certa satisfação e deu o mote para o texto que começo aqui: dois escritores da lista dos meus preferidos foram premiados no Prêmio Portugal Telecom de Literatura 2007, o maior prêmio literário do país e que a partir desta edição incluiu
livros escritos em língua portuguesa em qualquer país, desde que editados no Brasil.

O grande vencedor foi Gonçalo M. Tavares, escritor português nascido em Angola, de 37 anos, por sua obra Jerusalém, publicada no Brasil pela Companhia das Letras. Levou 100 mil reais, uma soma considerável, tanto aqui como em Portugal.

O segundo lugar, prêmio de 35 mil reais, foi para Dalton Trevisan, por seu livro Macho não ganha flor (Record). É a segunda vez que o escritor é premiado pela Portugal Telecom: em 2003, ganhou o primeiro lugar com o livro Pico na Veia (dividindo a premiação com Bernardo Carvalho). Para não romper a tradição, o recluso Trevisan não compareceu à cerimônia de premiação, preferindo mandar uma mensagem: "Só a obra interessa. O autor não vale o personagem. O conto é sempre melhor que o contista. Vampiro sim, de almas. Espião de corações solitários, escorpião de bote armado. Eis o contista. Só invente o vampiro que exista. Com sorte, você adivinha o que não sabe. Para escrever o menor dos contos, a vida inteira é curta. [...] Quem lhe dera o estilo do suicida em seu último bilhete."

Dalton Trevisan
é uma paixão antiga, leio suas histórias há tanto tempo que parece que o conheço desde criança - o que não é absolutamente a verdade. Seus contos curtos e ácidos, de Joões e Marias, personagens universais de segredos inconfessáveis em seus dramas cotidianos , não são propriamente histórias para crianças. O primeiro livro que li dele foi Guerra conjugal. Daí pra frente, devorei quase todos os outros. Trevisan é um obsessivo pela síntese, pela linguagem concisa do conto e se aprimora a cada obra publicada.

Gonçalo Tavares é outro obsessivo (a literatura requer obsessão?). Ao falar de suas influências, citou um ditado chinês que é quase uma maldição: "não te atrevas a escrever um livro antes de ler mil ". Com o prêmio, disse que pretende comprar tempo:
" - Tenho três filhos. Isso em iogurte e leite se vai. O principal que eu quero é comprar tempo. Não quero Mercedes, não quero ser rico. Quero ter tempo. " O escritor, mesmo consagrado, com mais de 20 livros publicados em 12 países, não vive só de literatura. Divide seu tempo entre aulas em universidades e suas obras. Publicou sua primeira obra em 2001 e, nos três anos seguintes, teve 14 livros publicados, entre romances, poesia, teatro e contos.

O poema abaixo é do livro O homem ou é tonto ou é mulher (Casa da Palavra, 2005) que, a princípio, pode ser classificado dentro do gênero da poesia, mas que se revela também um monólogo dramático em versos - o livro já foi até transformado em peça teatral. A originalidade de sua produção literária é marcada por essa característica: a de contrariar classificações de gênero.


O desejo estraga tudo.
Tenho 32 planos.
52 projetos.
30 estruturas perfeitas.
O dia é claro e calmo e tem 24 horas.
De repente chega o desejo e estraga tudo.
O dia fica claro demais.
Calmo de menos.
E já não há 24 horas.
O tempo inteiro concentra-se num ponto.
Aqui. (aponta para o sexo)

Tenho o tempo concentrado aqui.
Muitos minutos concentrado no sexo.
O desejo é isto.
Ter um órgão a mais para o tempo que faz lá fora.
Lá fora o tempo tem 24 horas.
Cá dentro é bem mais pequeno.
O tempo entra todo pelo sexo e quer deixar de existir.
O esperma é o suicídio do tempo.
O esperma sobe para a torre e atira-se lá de cima.
É um suicídio.
Um suicídio do tempo.

O desejo estraga tudo.

Tinha tantos planos racionais para hoje.

Os números eram quase perfeitos.

O desejo estraga tudo.


A poesia de Gonçalo Tavares, mesmo sendo ostensivamente uma poesia de idéias, também é, em grande medida, um trabalho de requintado lirismo. Um lirismo que tenta escapar, racionalmente, do desamparo das emoções.