Não há no cenário literário brasileiro dos últimos quarenta anos um nome mais significativo que o de Raduan Nassar. Com apenas dois livros, Lavoura Arcaica (1975) e Um Copo de Cólera (1978), Nassar arrebatou vários prêmios literários e ganhou o respeito da crítica como um escritor de importância comparável à de Guimarães Rosa, Rubem Fonseca e Clarice Lispector. Publicados também na França, Alemanha e Espanha, seus livros trazem elementos da literatura clássica mesclando a dramaticidade desta com os da tradição brasileira e universal. O texto de grande força e densidade poética cria imagens ora intimistas, ora impactantes, e essa característica, aliada à visão e direção talentosa de Luiz Fernando de Carvalho, talvez explique o sucesso que a adaptação de Lavoura Arcaica fez no cinema.
Lavoura Arcaica possui a característica comum a toda grande obra de arte: a de nunca se esgotar. Passados 32 anos de sua publicação é, sem dúvida, um clássico e comprova sua força, à medida que ao longo dos anos vem criando possibilidades múltiplas de análises e estudos. No seu sentido dramático, filia-se à grande tradição que deu origem a obras como Édipo Rei e Hamlet. Ao mergulhar nas profundezas do inconsciente, nos vãos escuros da família, extrapolando-os à civilização ou à não-civilização que a rodeia, o autor consegue, partindo de um plano rural e particular, atingir o universal.
A trajetória de Nassar como escritor, no entanto, foi meteórica. Em 1984, então com 48 anos, ele comprou a fazenda Lagoa do Sino, perto da cidade de Buri, a 250 quilômetros de São Paulo e passou a se dedicar ao cultivo de arroz, milho e feijão. Espantou a todos, logo em seguida, ao anunciar que iria parar de escrever. "Estou dando uma virada radical na minha vida e começo a me perguntar como é que pude entrar por esse cano da literatura. Minha cabeça fervilha com outras coisas, ando às voltas com agricultura e pecuária, procurando me enfronhar sobre tratores e implementos. Tudo isso que nada tem a ver com o pasto das idéias", declarou na época, em um de seus raros depoimentos. "Em termos estruturais, não considero o processo de invenção da literatura diferente do processo de invenção em outros campos da atividade humana. Já disse que qualquer indivíduo, a menos que seja bloqueado pelas condições de vida, é capaz de inventar, que inventar não é exclusivo de uns poucos", justificou em 1992. Alfinetou ainda os que lhe exigiam novas produções. "Não existem só os pedantes que se perdem num cipoal de palavras para dizer ninharias, existem também orelhas prolixas, sempre dispostas a ouvir as maiores lorotas."
Volta e meia nos deparamos com essa questão: a literatura é tão importante assim, como fazemos questão de alardear? As grandes obras são capazes de mudar vidas - mudou a minha, prometo que qualquer dia conto essa história -, mudar até a história de nações e muitos compartilham dessa opinião. Mas parece que alguns escritores acreditam que tão ou mais importante que a literatura é a vida real: criar bois, plantar milho, lutar em uma revolução. Escrever é um ato angustiante demais, ao qual poucos conseguem sobreviver? Ou seria tão banal quanto regar um jardim ou lavar pratos, que podemos simplesmente optar por não fazê-lo mais? Eu o vejo como uma paixão, que arrebata e consome. Como começa e por que termina, difícil explicar. Essa contradição é que faz da literatura um mistério insondável e fascinante.
Em 1997, a Companhia das Letras reuniu em um livro entitulado Menina a Caminho, cinco narrativas curtas que, com exceção de um texto inédito - Mãozinhas de Seda, produzido em 1996 -, foram todas escritas por Raduan Nassar nas décadas de 60 e 70. É desse livro que extraí o conto Aí Pelas Três da Tarde, bem diferente do estilo denso e dramático de Lavoura Arcaica. O conto sugere o escape do previsível, a recusa das situações confortáveis e asfixiadas pelo tédio.
AÍ PELAS TRÊS DA TARDE
Nesta sala atulhada de mesas, máquinas e papéis, onde invejáveis escreventes dividiram entre si o bom senso do mundo, aplicando-se em idéias claras apesar do ruído e do mormaço, seguros ao se pronunciarem sobre problemas que afligem o homem moderno (espécie da qual você, milenarmente cansado, talvez se sinta um tanto excluído), largue tudo de repente sob os olhares a sua volta, componha uma cara de louco quieto e perigoso, faça os gestos mais calmos quanto os tais escribas mais severos, dê um largo "ciao" ao trabalho do dia, assim como quem se despede da vida, e surpreenda pouco mais tarde, com sua presença em hora tão insólita, os que estiveram em casa ocupados na limpeza dos armários, que você não sabia antes como era conduzida. Convém não responder aos olhares interrogativos, deixando crescer, por instantes, a intensa expectativa que se instala. Mas não exagere na medida e suba sem demora ao quarto, libertando aí os pés das meias e dos sapatos, tirando a roupa do corpo como se retirasse a importância das coisas, pondo-se enfim em vestes mínimas, quem sabe até em pêlo, mas sem ferir o decoro (o seu decoro, está claro), e aceitando ao mesmo tempo, como boa verdade provisória, toda mudança de comportamento. Feito um banhista incerto, assome em seguida no trampolim do patamar e avance dois passos como se fosse beirar um salto, silenciando de vez, embaixo, o surto abafado dos comentários. Nada de grandes lances. Desça, sem pressa, degrau por degrau, sendo tolerante com o espanto (coitados!) dos pobres familiares, que cobrem a boca com a mão enquanto se comprimem ao pé da escada. Passe por eles calado, circule pela casa toda como se andasse numa praia deserta (mas sempre com a mesma cara de louco ainda não precipitado) e se achegue depois, com cuidado e ternura, junto à rede languidamente envergada entre plantas lá no terraço. Largue-se nela como quem se larga na vida, e vá ao fundo nesse mergulho: cerre as abas da rede sobre os olhos e, com um impulso do pé (já não importa em que apoio), goze a fantasia de se sentir embalado pelo mundo.
(in "Menina a Caminho", Companhia das Letras - São Paulo, 1997)
Leia também - se puder escapar do tédio - o conto Hoje de Madrugada, do mesmo livro: um relato contundente do fim de uma relação onde os gestos imaginados, os silêncios sugeridos, aquilo que não é dito, competem em densidade dramática com as palavras realmente ditas. É mágico. Torço para que Raduan Nassar volte a fazer literatura, entre as safras de milho do seu sítio.
[foto de Raduan: publicada em Cadernos de Literatura Brasileira, Instituto Moreira Salles, nº 2, setembro 1996]
5 comentários:
O Massi deveria ter uma conversinha com o Nassar.
Que Raduan Nassar volte... E que nós também tenhamos nossos papéis entrando pelos canos da literatura.
Lá vamos nós, assim espero.
Estou com o Lavoura na fila aqui. Não consegui entrar no clima do filme, mas o livro já me pegou pelas primeiras páginas (sim, leio as primeiras páginas de tudo que compro e abandono, até que o livro chegue em mim). Espero que logo possa comentá-lo no Vc.
Beijos
Puxa, q imbecil eu fui.
Um amigo insistiu que eu assistisse Lavoura Arcaica, até me emprestou o DVD; não assisti, devolvi sem tê-lo visto...
Tenho q reparar esse erro.
Esse livro é fantastico. Poucos chegam a tamanha elegancia em termos de linguagem. O filme ainda não vi, por obras do destino. Correrei atras.
intiresno muito, obrigado
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