sábado, 4 de dezembro de 2010

Essa mulher



— Pensei ter ouvido um barulho. Esses porcos não vão me pegar desprevenido, como da outra vez.
Volta a sentar, agora mais perto da janela. A metralhadora sumiu, e o coronel novamente divaga sobre aquela grande cena de sua vida.
— ... se atirou em cima dela, aquele galego nojento. Estava apaixonado pelo cadáver, o alisava, bolinava seus seios. Eu acertei um murro nele, olhe — o coronel olha o próprio punho —, que o estatelou contra a parede. É a podridão total, não respeitam nem a morte. Não se importa de ficar no escuro?
— Não.
— Melhor assim. Daqui posso ver a rua. E pensar. Eu sempre penso. É melhor pensar no escuro.
Serve-se mais um uísque.
— Mas essa mulher estava nua — diz, argumenta contra um possível contraditor. — Tive que cobrir seu monte de vênus, eu a vesti com uma mortalha, e o cordão dos franciscanos.
Ri bruscamente.
— Tive de pagar a mortalha do meu próprio bolso. Mil e quatrocentos pesos. Isso prova, não? Isso prova.
Repete várias vezes "isso prova", como um brinquedo mecânico, sem explicar o que isso provaria.
— Tive de pedir ajuda para mudá-la de caixão. Chamei uns operários que estavam trabalhando na área. Imagine como ficaram. Para essa gente, ela era uma deusa, essas coisas que enfiam na cabeça deles, coitados.
— Coitados?
— É, sim, coitados. — O coronel luta contra uma esquiva cólera interior. — Eu também sou argentino.
— Eu também, coronel, eu também. Somos todos argentinos.
Rodolfo Walsh. Essa mulher e outros contos. Editora 34, 2010, p.24.

3 comentários:

Anônimo disse...

Il semble que vous soyez un expert dans ce domaine, vos remarques sont tres interessantes, merci.

- Daniel

Anônimo disse...

É melhor pensar no escuro. Um sentido a menos ajuda: sem visão, mais visão.

Anônimo disse...

E não fazer sentido algum não só ajuda.