"Há um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso. "
[Sobre o conceito da história, de Walter Benjamin. In: Magia e técnica, arte e política. Brasiliense, 1985]
**"Estou aqui para esconjurar um demônio. Ele, para trepar comigo. Imagino eu. Pelo menos foi o que fizemos. Uma semana só, tinha dito ele, não mais que isso. Teria de voltar depois ao seu mob. Mob, clã, como se diz aqui. Ele só não disse onde. Algum lugar no outback, nos confins intermináveis deste país. Não faço idéia do que ele tem em mente. É possível até que também esteja me ludibriando. Mas como pode mentir, se ele não diz praticamente nada?
Está dormindo, e, quando dorme, passa a ser o próprio tempo. As pessoas aqui são as mais antigas do mundo. Têm vivido neste país há mais de quarenta mil anos; mais próximo da eternidade que isso, impossível. Uma noite eu saí de carro para dar uma volta, e veja onde vim parar. Eu sei que a coisa não é bem assim, mas na minha cabeça é, sim. Nada do que eu penso é aceitável, mas quem pode me impedir de pensar o que eu quiser? Fito ao meu lado um homem adormecido, que parece ter vivido mais de um século, por mais novo que seja. Está deitado no chão, enrolado como um bicho. Ao abrir os olhos, torna-se velho como uma pedra, como os lagartos que se vêem aqui no deserto, porém se trata de uma velhice não acentuada, leve, já que todos os seus movimentos são leves, como se ele não sentisse o peso do corpo. Esforço-me em dizer a mim mesma que essa impressão é tão falsa como a primeira, mas não é bem assim. Acabei me metendo numa situação da qual perdi o controle, uma vez que aqui a minha noção de tempo não vale. Às vezes, quando me encontro com ele no deserto, neste país constituído quase só de desertos, ou quando me mostra coisas que eu não enxergo e ele próprio se torna a personificação deste país, ciente de onde se encontra o oásis que se mantém oculto para mim, quando me sinto pequena perante sua incomensurável velhice, que vê comida aonde eu apenas vejo areia, é então que acabo involuntariamente pensando que saí de casa naquela noite para chegar aonde estou agora. Abandonei o peso dos trópicos, onde tudo é móvel e ruidoso, a fim de vir parar no silêncio em que agora me encontro."
[trecho de Paraíso Perdido, de Cees Nooteboom, trad. de Cristiano Zwiesele do Amaral, Companhia das Letras, 2008, 158 pág.]
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Nooteboom esteve na FLIP. Ele e o escritor colombiano Fernando Vallejo, foram responsáveis por um dos 'embates' mais interessantes do evento. Às provocações do cáustico colega latino-americano, entre irônico e bonachão, Nooteboom revidou: “Fernando é o ser mais gentil que conheço, mas é também o mais furioso. Nós dois somos dois pólos opostos.” E revelou uma conversa que os dois haviam tido no café-da-manhã, no hotel de Parati onde estavam hospedados. Vallejo, vegetariano, censurou-o por comer carne, dizendo que, com hábitos desse tipo, selvagens e impiedosos em relação aos animais, ele acabaria indo para o inferno. Ao que Nooteboom respondeu: “Pode ser, mas pelo menos lá encontrarei um monte de gente interessante”.
Palmas para Nooteboom.
3 comentários:
Poxa, Myriam! Fuçando no orkut achei seu perfil e acabei parando aqui no blog. Resultado: continuarei visitando, logicamente. Além de ter lido pelo menos 5 posts seguidos, gostei de praticamente todos eles.
Abraço.
ups ... caso você não saiba quem sou eu. Faço as matérias do francês contigo. Uma baixinha de olhos claros. =D
A observação a respeito do Angelus Novus me lembrou o albatroz de baudelaire...
=D
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