quarta-feira, 16 de abril de 2008

histórias de sebos


Quem gosta de sebos sempre tem uma história pra contar. Raridades que encontrou, pechinchas que conseguiu ou perdeu, tipos estranhos que viu, uma amizade que fez, um amor que conheceu. Por falta de tempo, frequento pouco os sebos, bem menos do que desejaria. Talvez seja por isso que esta história, acontecida há alguns anos, tenha acontecido num ambiente virtual.

Nasci e sempre morei em São Paulo, mas em muitos endereços diferentes. Enfrentei várias mudanças, fiquei craque em embalar, encaixotar, etiquetar. Apesar dos meus cuidados, numa dessas mudanças, a transportadora perdeu uma caixa com livros: surreal, mas aconteceu. Nela estavam uns quinze livros de ficção científica: Asimov, Bradbury, Clarke, uma galáxia inteira de mundos maravilhosos visitados. E outros mais antigos, que eu com certeza não leria novamente, mas pelos quais guardava um carinho especial: Agatha Cristie, Jorge Amado, muitas HQ’s, uma parte boa da minha adolescência. Fiquei inconformada, em seguida desolada, mas o desespero veio quando, terminada a operação desencaixotamento, não achei o meu O Lobo da Estepe. Era o meu livro mais amigo e ao qual recorria, em alguns momentos difíceis: certas passagens me traziam conforto, uma calma interior, até. Substituí-lo revelou-se totalmente inviável, as edições mais novas eram muito diferentes da minha, perdida: outras capas, folhas de papel muito novo, letras que eu não reconhecia. Enfim, não se pareciam com o meu livro: eram como estranhos a dizer velhas frases conhecidas – um terrível deslocamento.

Enviei, então, um e-mail a um sebo virtual que trabalhava com edições raras: o responsável pelos pedidos me respondeu, muito atencioso. Ao explicar que teria de ser a edição da Civilização Brasileira, "aquela que tem na capa o desenho de um homem de costas, com orelhas de lobo", ele respondeu: "É a 3ª edição, de 69. Realmente, a capa é muito original." Na verdade, eu nem sabia a edição; pareceu-me errada a data, muito antiga (69?), mas, impressionada com a convicção do livreiro, acreditei. Trocamos vários e-mails, por mais de um mês. Ele parecia entender a minha angústia por ter perdido o livro. Solidário, disse que O lobo também era um dos seus preferidos; pediu que eu tivesse paciência, que iria achá-lo logo. Eu queria acreditar, e acreditava. Suas mensagens tinham um tom familiar, quase carinhoso. Na minha fantasia, sentia-o quase como um amigo; imaginava-o com roupas antiquadas e dono de uma história singular: alguém que recusou um emprego promissor numa multinacional para terminar um doutorado sobre lírica latina e que ganhava a vida caçando livros antigos para doentes em literatura. Lembrei daquele filme, Nunca te vi, sempre te amei, sobre um livreiro (Anthony Hopkins) que, por anos a fio, troca cartas com uma escritora (Anne Bancroft). Terrivelmente triste, o filme. Lembro ter derramado algumas lágrimas no final. Já havia perdido a esperança de que o livro seria encontrado, quando recebo um e-mail: “Encontramos o livro solicitado, O lobo da estepe, de Hermann Hesse. Por favor, confirme seu interesse e se ainda deseja que o enviemos. Atenciosamente...”. Frio, burocrático. Se ainda desejo o livro? Eu aguardava ansiosamente, sofrendo todo aquele tempo, ele não sabia? Sabia. Aquela mensagem era um rompimento, irremediável. Confirmei o pedido, fiz o depósito, recebi o livro em dois dias, encapado com papel manteiga, envolto em plástico bolha, dentro de uma caixa de papelão. Eficientíssimo.

Não falei mais com o insensível livreiro. O Lobo? Está sempre ao lado de minha mesa de trabalho, como um cachorro fiel. Nunca me decepcionou.


[foto: sebo Baratos da Ribeiro, Copacabana, RJ]

6 comentários:

Raphael Yanes disse...

adorei as comparações entre livro x vendedor virtual.

Só fiquei triste por vc não achar a caixa, realmente é uma perda gigante.
:(

lindo texto My

beijo!

Anônimo disse...

Olá, =).
Sou uma aspirante a bixete do curso de letras na usp, vi o link de seu blog na comnidade Letras- USP 2009.
Também gosto muito de O Lobo da Estepe; só li este post, mas seu blog parece ter muitas coisas com as quais me identifico, vou dar uma boa navegada nele. =)
Beijos!
Josiane.

Eduardo Vilar disse...

Uma ótima estória de se ler! Para mim essa seria uma das caixas mais valiosas, imagino que para você também foi.
Muito bacana seu blog, voltarei aqui outras vezes.

Ah, sou bicho da Letras. Encontrei seu blog no orkut.

beijos!

Anderson Lucarezi disse...

hahahahahaha.
pô, my. vai que foi outra pessoa que respondeu em nome dele.

(ainda acredito na humanidade. rs)

Fernando disse...

Concordo com o Anderson...rs

Fico contente que pelo menos uma pequena e valiosa parte do seu tesouro perdido tenha sido recuperada. Ficarei esperto quando for me mudar. Acho que eu mesmo levarei os livros e meus boxes com as temporadas da Feiticeira no meu porta-malas...rs

Samuel Medina (Nerito Samedi) disse...

As conexões são enfim efêmeras. Já tive momentos assim. Algumas relações ficaram, outras não. Agora, quem sabe se vc continuasse a procurar outros livros, cada vez mais raros, cultivando essa proximidade? Afinal, nem sempre temos a oportunidade de um livreiro particular! ^_^