Já falei neste blogue sobre António Lobo Antunes - escritor português, nascido em 1942, 27 títulos publicados, traduzidos em 16 línguas, ganhador de vários prêmios literários, sendo o mais recente o Prêmio Camões de 2007. A exemplo de W. Faulkner e V. Woolf, desenvolve um tipo de narrativa entrecortada de lembranças, possuindo no entanto um estilo pessoal, inconfundível: ninguém escreve como Lobo Antunes. É, sem dúvida, o maior vulto do romance português recente.
Esse é o trecho de que mais gosto do livro. Descrições simultâneas, físicas ou de pensamentos; o passado misturado ao presente; os versos da canção Pequeña serenata diurna, de Silvio Rodríguez: múltiplos elementos que se contrapõem e criam um efeito de caleidoscópio, de grande riqueza lingüística e sensorial. Ninguém escreve como Lobo Antunes.
[...] durante a viagem a orquestra do navio tocava tangos mofentos para bodas de prata, embarquei a 6 de Janeiro e na noite do fim do ano tranquei-me no quarto de banho para chorar, um bolo-rei impossível de engulir entupia-me a garganta, empurrei-o a champanhe e ele tombou na barriga no som dos pedregulhos no poço do jardim do avô, plof!, provocando círculos concêntricos no lago da canja do jantar, o poço sob as árvores ao pé do muro para a estrada onde se ia fumar às escondidas, o caseiro tirou o chapéu e explicou respeitosamente a coçar a cabeça O que a gente precisa é que alguém tomar conta de nós o menino não acha?, e se vier alguém tomar conta de nós o que pensa você que começaria por fazer, levar-me para sua casa, levá-la para minha casa, lavar-nos os dentes, estender-nos na cama, e falar-nos em voz baixa até adormecermos, falar-nos de serenidade e alegria até adormecermos, falar-nos do primeiro de Maio de 74 que os políticos inquinavam já da massa folhada sem recheio dos seus dircursos veementes, mas onde crescia nas ruas uma irresistível fermentação de esperança, os ministros de Caetano borravam-se de medo na Madeira, os pides borravam-se de medo em Caxias, uma festa de labaredas vermelhas alastrava triunfalmente em Lisboa, quiero que me perdones los muertos de mi felicidad, los muertos de mi felicidad no cacimbo de Angola, seis meses de cacimbo enevoado e capim amarelo a arder ao longe, perdoe-me os mortos da minha felicidade quando lhe seguro na mão, quando meus joelhos apertam os seus, quando a minha boca vai tocar na sua e os olhos se fecham devagar como corolas nocturnas, todos os meus ontens se encontram presentes neste beijo, talvez que as múmias do bar se esfarelem como os vampiros à aproximação do dia num concerto de dobradiças que se quebram, todos os meus ontens, percebe?, O que a gente precisa, menino, garantia o caseiro, é que venha alguém cuidar de nós, [...]
[In Os cus de Judas, de António Lobo Antunes - Rio de Janeiro: Objetiva, 2003 - pág. 75 e 76]
2 comentários:
já passou da hora de eu ler esse livro!
ai, é tanta coisa!
rs
Eis aí o grande autor português de nosso tempo...
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