quarta-feira, 24 de outubro de 2007

um jacto d'água fria

Ser uma pessoa otimista ajuda em quê? Às vezes, em nada.
Saber que uma pessoa linda e jovem, com muitos sonhos para o futuro, tem uma doença grave ou que outra, que sempre deu duro a vida inteira no trabalho está envelhecendo, sem condições para sobreviver: estar próximo a elas estremece nossas convicções, nos faz parar para pensar - e para sentir.

Volto a Gonçalo M. Tavares. Quando li esse texto/poema da primeira vez, achei-o ácido e pessimista. Aos poucos, nas leituras seguintes, fui mudando minha opinião; cheguei mesmo a ter um carinho por essas palavras duras, como quando a gente gosta de alguém rude, arredio, mas encantador. Nos últimos dias, elas me vieram à lembrança e no bonito idioma de Portugal me pareceram mais verdadeiras que nunca.

Gostava de vos dizer uma coisa para terminar.

Às vezes tenho medo. Muito medo.
Às vezes, sofro.
Às vezes, penso nas pessoas que amo e penso na possibilidade
de as perder.
Às vezes vejo alguém doente e fico incomodado.
Pode não ser um amigo ou um familiar.
Posso estar a vê-lo pela primeira vez.
Mas fico incomodado.
Aquela doença pertence-me.

Todas as doenças pertencem a toda gente.
Todos os sofrimentos pertencem a toda gente.
Todas as mortes pertencem um pouco a toda gente.
Às vezes sinto isso muito,
outras vezes sinto menos.
Quando sinto menos posso preocupar-me com o mundo,
brincar com a poesia,
com a filosofia e com as palavras.
Mas quando sinto, deixo de conseguir pensar.
Quando sofro ou sinto o que alguém sofre, deixo mesmo
de querer ser inteligente.
Deixo de querer parecer inteligente.
Se estivermos cheios a sentir, não temos espaço para pensar.
Não fazem sentido as lógicas,
as filosofias,
as discussões.
Todo o nosso corpo sente.
E o que resta? Nada.
Só existe aquela morte, aquela doença, aquela velhice.
Só aquele pai que amo e que está a envelhecer. Só aquela mãe
que amo e que está a envelhecer.
Só aquele amigo que se tornou amargo
porque a mulher o deixou.
Só o amor e a falta de amor.
As mulheres que nos enganam e as mulheres que são enganadas,
as mulheres e os homens que enganam.
Os amigos que deixam de o ser,
Alguns inimigos que morrem, e temos pena.
Que importa o resto?
Onde está o livro importante?
O filme que resolve?
Podemos chorar à frente de um quadro, mas não resolve nada.
Podemos pintar um quadro, escrever um poema, mostrar às
mulheres bonitas como somos bonitos, exibir o nosso corpo,
mas que adianta?
Estamos sozinhos.
Se não estamos, vamos estar.
Os amigos vão-nos deixando, vão-nos deixar.
Vão morrer ou nós vamos morrer.
Ou vão deixar de nos telefonar, ou então deixamos de lhes
querer telefonar.
Estamos sozinhos. As pessoas que amo vão morrer.
Os livros não resolvem nada. A poesia é bonita e por vezes
descansa, acalma, mas não resolve nada, não resolve nada.
Somos artistas ou não somos, e qualquer coisa que seja não
adianta nada e nada impede.
Escrevemos poemas, mas não ajudam ninguém.
Escrevemos peças de teatro, sorrimos, tentamos pensar,
tentamos ter idéias, tentamos distrair as pessoas, tentamos
fazer pensar as pessoas, tentamos fazer chorar as pessoas, e
isso é bom, e pode até ser bonito, mas não adianta nada,
não resolve nada,
não adianta nada.

(in O homem ou é tonto ou é mulher, Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005)

6 comentários:

Anderson Lucarezi disse...

My, esse poema me lembrou um dia - há uns meses atrás - em que eu estava down; eu andava pelo centro da cidade e resolvi entrar num sebo na rua São Francisco. Eu tava bem caído mesmo. Foi um dia difícil e tal; entrei e comecei a olhar as estantes. Peguei um livro aleatório e, ao abrí-lo, me deparei com uma folha dobrada. Abri e lá havia um poema :

AS MORTES

Quando o meu primeiro amor
Morreu
Eu disse: morri

Quando meu pai se foi
Coração descontrolado
Eu disse : morri

Depois, a avó do Norte
Os amigos da sorte
Os primos perdidos
O pequinês, o siamês
Morri, morri

Estou vivo
A poesia pulsa
A natureza explode
O amor me beija na boca
Um Deus insiste que sim

Sei não
Acho que só vou
Morrer
Depois de mim

(Tanussi Cardoso)

O poema causou um pacto tão grande em mim que fiquei uns instantes a contemplar a folha antiga e meio amassada em que ele estava escrito. Dobrei-a e coloquei no bolso. Demorei pra postar esse comentário porque fui procurar a tal folha, que estava um tanto quanto escondida.
Esses poemas sobre o tempo e a passagem das coisas sempre mexe comigo; sou muito vulnerável a isso, mas, no fundo, acabo levando...

Unknown disse...

Primeiro o poema que vc colocou My...me fez sentir meio estapeado, pq eu pensei e penso várias vezes muita coisa que ai está dito. Depois, ao ler o queo Luca deixou...foi como ter virado e dado a outra face...
Acho q sou uma pessoa de certa forma pessimista, mas ainda tenho algumas crenças nas boa possibilidades.

Mas ainda que se diga "não resolve anda"...o poema, a palavra..., medotona, desconstri, reconstroi...

Myriam Kazue disse...

Acho que o poema de G. Tavares mostra a nossa verdadeira impotência diante das circunstâncias da vida, a maioria delas sem compreensão, por que nos tornamos cada vez mais mesquinhos, vaidosos, arrogantes. Ao fazer isso, coloca-nos no nosso lugar: não somos nada, não mudamos nada.

Mas o poema do Tanussi, nos dá uma injeção de vida, nos faz acreditar que mesmo sem nada sabermos ("sei não") vale a pena continuar. Apesar de tudo.

É isso: "a poesia pulsa".

E muitas vezes, ela nos salva tb.

Valeu muito, Luca.

Petê Rissatti disse...

Sou um otimista de plantão, já disse isso um milhão de vezes. Mas estou longe de ser ingênuo, então no fundo, no fundo, talvez eu seja um pessimista inconfesso. Sei que no final das contas o título do próximo filme do Hugo Carvana é perfeita: "Não se preocupe, nada vai dar certo". O passar do tempo traz uma sensação de perda cada vez maior, porém precisamos driblar isso para não cair no desespero. E levamos a vida assim, querendo fazer algo que no fundo não adianta nada. E isso, talvez também, seja um dos nomes que damos ao sonho, não é mesmo?
Um beijos otimista procê, Kazue San.

Anônimo disse...

Amei o poema. Me identifico mto mesmo com ele, principalmente neste verso:
"Estamos sozinhos. As pessoas que amo vão morrer."

Adorei mesmo!

Beijão!

Anderson Lucarezi disse...

Concordo muito com o que o Pete falou.
E não é que quem vive de sonho e ilusão até que é menos infeliz?

(errata : no fim do meu primeiro post, eu quis dizer 'impacto', e não 'pacto')